A mancha - Luis Fernando Verissimo

© Sorin Dumitrescu Mihaesti
A mancha

Enriquecer. Rogério achava engraçada aquela palavra. Quando lhe perguntavam o que ele fizera depois de voltar do exílio e ele respondia “enriqueci” era como se fosse alguma coisa orgânica. Como se dissesse “engordei” ou “perdi os cabelos”. As pessoas riam e não pediam detalhes, não perguntavam “Enriqueceu como?”. Se ele dissesse “fiquei rico” teria que explicar. Contar que comprava e vendia imóveis, pegava casas e prédios abandonados, reformava e vendia, ou demolia e negociava o terreno. Mas dizer “enriqueci” era uma maneira de desconversar. De dizer que enriquecer lhe acontecera como qualquer outra fatalidade biológica. Não era culpa sua. Os poucos que conheciam a sua vida riam da resposta como quem diz: “Bem feito!”
Comprava e vendia imóveis. Comprava barato, arrumava e vendia ou demolia. Vivia atrás de prédios decrépitos, de casas em ruínas, de sinais externos de abandono. Dedicava-se àquilo como alguém que se entrega a uma causa. A mulher, Alice, já se acostumara com suas freadas bruscas, sempre acompanhadas da frase “Olha ali!”, quando ele avistava outro edifício morto, outro jardim selvagem, outro possível negócio. Alice dizia “Bendito cinto de segurança”, porque o cinto salvara seu rosto e seu casamento mais de uma vez. Rogério descia para examinar o prédio e não era raro deixar o carro parado no meio da rua com a mulher dentro aguentando as buzinadas. Ela o conhecera depois do exílio, depois de tudo passado. Já o conhecera assim, agitado, estabanado. Tendo pesadelos. Dizia: “Deixa o passado no passado, que é o lugar dele, Rô.” Não sabia se ele já era assim antes do exílio, antes de se conhecerem, antes de passarem uma noite inteira discutindo cinema, discordando em tudo e se apaixonando. A mãe dele não ajudava. Dizia “Ele sempre foi muito ansioso”. Mas o exemplo que dava era o jeito dele de comer pêssego quando garoto.
Ele se mantinha informado sobre heranças litigiosas, falências, despejos, sinais de inadimplência e impostos atrasados, tudo que pudesse indicar a existência de uma propriedade desvalorizada em algum lugar para comprar barato, arrumar e vender ou destruir e enriquecer ainda mais. E dirigia olhando para os lados. Examinando as fachadas dos prédios. “Procurando os cariados”, dizia. Era a sua causa, por ela ele sacrificava tudo. Percorria a cidade, de carro, atrás de sinais de decomposição. Dizia que rodeava a cidade como um cachorro faminto rondando um refeitório, atento para as sobras. Ou para comida deteriorada. O sogro, pai de Alice, que era do ramo imobiliário, dizia: “Ele vive do nosso lixo.” E chamava-o de “Rogério, o Demolidor”.
— Olha ali!
Freada brusca. Era um prédio estreito de quatro andares. Recuado, atrás de um muro baixo e de um terreno de terra batida que a vizinhança adotara como depósito de lixo.
— Rogério, nós estamos atrasados. Deixa para ver depois.
Estavam indo conhecer a casa nova do irmão dela. Jantar marcado para as nove, já eram nove e quinze. E a casa ficava fora da cidade.
— Vou dar só uma olhada rápida.
O portão do muro baixo não existia mais. A porta do prédio estava trancada. Nenhum cartaz, mas uma plaqueta pregada na porta: “Tratar com Miro” e um número de telefone. A plaqueta era pequena. Miro não parecia muito interessado em vender. E era antiga. Ninguém que tratara com o Miro nos últimos anos fechara negócio. Rogério anotou o número na sua agenda. Sempre carregava uma agenda no bolso, para anotações como aquela. Era um homem organizado, apesar da agitação constante. Deu alguns passos para trás para examinar a frente do edifício. Não havia muito o que fazer com ele. Com aquela largura, dava para uma peça na frente, mais duas ou três atrás, no máximo. Escritórios. Todo o prédio como sede de um pequeno negócio. Nem pensar em instalar elevador. Talvez valesse pelo terreno. Trataria com o Miro.
— E esta nossa política, seu Rogério? E esta nossa política?
O cunhado, Léo, que era dos que conheciam a sua vida, gostava de provocar Rogério. Instruía o filho de 5 anos:
— Diz pro tio Rogério o que você é.
E o menino, enfatizando as sílabas:
— Re-a-ci-o-ná-ri-o.
— “Como o papai.” Diz.
— Co-mo o pa-pai.
— Esse menino está feito na vida — dizia Rogério.
— O titio é que está feito na vida, não é, Duda?
— É — dizia o garoto.
— Você conhece algum deles que não esteja feito na vida, meu filho?
— É — repetia o garoto, desinteressado.
A casa nova do cunhado era um casarão num condomínio fechado. O cunhado tinha saído a caminhar com ele depois do jantar. Para mostrar as canchas de tênis e o lago, iluminados.
Tudo comunitário. Para cada um de acordo com suas necessidades. “É o novo comunismo”, dissera Léo, apertando o braço do cunhado. A área era toda cercada e patrulhada por guardas armados. O maior custo do condomínio era com segurança, mas o cunhado dizia que tranquilidade não tinha preço.
— E esta nossa política, seu Rogério? O que você me diz? — provocava o cunhado.
— Não posso me queixar — dizia Rogério.
O prédio estreito de quatro andares era da mãe do Miro. O filho cuidava dos negócios dela. A mulher não tinha pressa em vender, mas se a oferta fosse boa... Combinaram um encontro para Rogério ver o prédio por dentro. Miro era gordo, com uma barba cerrada, e vestia um casaco de couro preto, apesar do calor. Tinha, provavelmente, metade da idade de Rogério mas respirava com dificuldade e pediu licença para não subir a escada. Rogério podia subir, examinar o que quisesse. Ele esperaria ali.
No primeiro andar, a escada terminava no começo de um corredor escuro que levava para o fundo do prédio. Virando à esquerda e passando o início do segundo lance das escadas, dava-se na porta aberta da única peça do andar com vista para a frente do prédio, e de onde vinha a luz que permitia a Rogério enxergar onde pisava. As janelas da peça eram dois buracos vazios. A primeira coisa que chamou a atenção de Rogério na sala foi o chão coberto por um carpete. Um incongruente carpete fino, de má qualidade mas inteiro, cobrindo o assoalho de parede a parede. Também fora a primeira coisa que ele notara anos antes, numa outra sala, numa outra vida, quando o negro tirara a venda dos seus olhos. O carpete incongruente. Lembrava-se de pensar que provavelmente a sala servia para outra coisa e na adaptação apressada não tinham se lembrado de tirar o carpete. Rogério caminhou até as janelas e espiou para fora. O gordo Miro estava na frente do prédio, chutando o chão de terra batida e fumando. Rogério virou-se e viu a mancha no chão. Um mapa da Austrália, mais escuro do que o resto do carpete. Em seguida, sem pensar, mas pressentindo com alguma parte das suas vísceras o que veria, olhou para a parede à sua esquerda, perto do teto. Lá estava ele. O perfil do Don Quixote. As paredes estavam cheias de estrias, em algumas partes o reboco tinha caído, como que arrancado a dentadas, mas o perfil do Don Quixote — o nariz adunco, a barba pontuda, até o gogó — continuava lá, inconfundível, desenhado em sépia sobre o fundo branco pela umidade.
Miro não sabia quem tinha ocupado o prédio. Não sabia nem quando ele fora construído. Podia perguntar para a mãe, mas duvidava que ela soubesse. Ela nunca sequer vira o prédio, parte da herança do pai, ou da mãe, ou de um avô, ele não sabia bem.
E agora a mãe não podia mais sair de casa. Rogério perguntou quanto queriam pela propriedade, mas não esperou Miro completar a resposta.
— Bom, só o terreno vale...
— Feito.
— Espera aí. Eu ainda não disse o preço!
— Desculpa.
— O senhor está passando mal?
— Não, não. Por quê?
— Parece meio...
— Não, não. Isso é normal. Quanto vocês querem?
Dessa vez, Rogério fingiu que prestava atenção e fingiu que hesitava antes de dizer “Feito”. Combinaram se encontrar no dia seguinte, para tratar da papelada. E Miro ficou de tentar descobrir alguma coisa sobre a história do prédio. Principalmente no período dos anos 60, começo dos anos 70, por aí, pediu Rogério.
— Anos 70?! — espantou-se Miro, fazendo uma careta. — Duvido que alguém ainda se lembre de alguma coisa dos anos 70...
Rogério ficara de pegar a filha no balé. Quando chegou em casa sem Amanda a mulher gritou:
— Francamente, Rogério!
— Esqueci, esqueci. Vou buscá-la agora.
— Eu vou. Pode deixar, eu vou.
A filha entrou em casa indignada. O pai a fizera esperar quase uma hora. No carro, ouvira as queixas da mãe. “Seu pai está cada vez pior!”
Chegou protestando:
— Francamente, papai!
— Amêndoa, Amandinha. Amandíssima...
— Nem vem.
— Dá um beijo no seu pobre pai, vai.
— Não-o!
— Perdão para os patetas!
— Me larga!
No quarto, começou a dizer a Alice que tinha uma coisa para lhe contar mas ela não quis ouvir.
— Você não pode continuar desse jeito, Rogério. Só pensando no trabalho. E sempre essa agitação. Essa tensão. Você sabe que dorme com os dentes trincados? Sabe?
— Deixa eu te contar o que aconteceu hoje.
— Eu não quero ouvir. Vou tomar meu banho.
— Eu conto pra você no banho.
Mas Alice fechou a porta do banheiro antes que ele pudesse entrar.
Mais tarde, na cama, ela ouviu. Disse que ele não podia ter certeza de que era o mesmo prédio. Ele não lhe contara que nunca vira o prédio, que era levado para lá com os olhos vendados?
— Mas eu reconheci a peça. E a mancha está lá, no chão. A mancha do meu sangue.
— Não pode ser.
— E o Don Quixote na parede.
— Depois de tantos anos, está tudo como antes? Um prédio caindo aos pedaços?
— Justamente por isso. Vai ver ninguém ocupou o prédio depois. Só tiraram os móveis e deixaram tudo como era. O carpete, as paredes como estavam. Nem eram muitos móveis. Na peça, só tinha uma cadeira de ferro onde nos botavam e uma espécie de sofá onde eles sentavam. Um sofá mole. Eu te contei. O negro se afundava no sofá.
— Pensa um pouco, Rogério. A peça fica na frente do prédio. Dá para a rua. Você acha que eles iam fazer uma sala de tortura na frente do prédio, para todo o bairro saber?
— Mas eu me lembrei de tudo. Das duas janelas, de tudo. E a mancha do meu sangue está lá.
— Depois de quarenta anos, você reconheceu a mancha do seu sangue num carpete. Está bom...
— E o perfil do Don Quixote na parede.
— Rogério, eu só te peço um favor. Não fale nada disso na frente da Amanda.
Foi como dizer “Não traga seu passado para dentro de casa”.
Rogério gostava da cara que o seu Afonso, seu mestre de obras, fazia sempre que examinava pela primeira vez um prédio que iria reformar. Era uma cara de desânimo. A cara dizia “O que é que me arranjaram agora?”. E seu Afonso sempre terminava sua apreciação com a mesma frase: “Vamos ver no que vai dar”, num tom que advertia para não esperarem muito dele. O Rogério queria fazer o que com aquele prédio magro e feio?
— Vamos só dar uma limpada e tapar os buracos.
— Posso começar na terça.
Rogério hesitou. Terça. Talvez não.
— Dê uma segurada, seu Afonso. Ainda tem uns problemas com os papéis. Eu aviso quando for para começar.
Não havia problema com os papéis. As negociações com Miro e sua mãe tinham sido rápidas e a documentação estava toda em ordem. Ele podia fazer o que quisesse com o velho prédio, sem demora. Pô-lo abaixo ou transformar num palacete. Rogério não sabia por que hesitara. Ou sabia. Não saberia era explicar.
— O Glenn Ford gosta de bater.
Rubinho, seu companheiro de cela, avisara que o pior deles era um parecido com o Glenn Ford. O Glenn Ford não usava nenhum instrumento. Nem protegia as mãos. Batia com o punho ou a mão aberta e sorria só para um lado, como o ator. E os outros?
— O negrão não participa. Tem um magrinho, de bigode, que é o que mais fala. Esse ameaça com um porrete. Eles também têm um negócio elétrico, um tipo de dínamo, para dar choque. Já me mostraram mas ainda não usaram.
O negro era o encarregado de levá-los para o interrogatório. Iam com os olhos vendados no banco de trás de um carro, com o negro ao lado. Um de cada vez. Subiam um lance de escada. Era o negro que retirava a venda quando chegavam à sala. Na primeira vez, Rogério ficara sentado na cadeira de ferro com as mãos algemadas por baixo de um dos braços da cadeira e o negro afundado no sofá mole, com os joelhos quase mais altos do que a cabeça, esperando, por meia hora, sem se falarem. Rogério olhando em volta, o carpete surpreendente, o teto, as paredes, as formas que as marcas de umidade tomavam no reboco. Tentando se recuperar do pavor que sentira dentro do carro, com os olhos vendados. Tentando se controlar. Aquela mancha ali parece um dragão. Aquela podia ser um chapéu. Aquela, um perfil do Don Quixote de la Mancha, sem tirar nem pôr. Uma mancha do Don Quixote em vez de um Don Quixote de la... E então o magrinho de bigode entrara na sala. Sem porrete. Apenas perguntara:
— O que você é do Alcebíades?
— Quem?
— Do Alcebíades. O sobrenome é o mesmo.
— Não sei.
— Não sabe. Má notícia, meu jovem.
E o magrinho de bigode saíra da sala, depois de fazer um sinal para o negro, que era grande e pesado e levara algum tempo para se livrar do sofá mole e ir abrir as algemas. Depois a venda nos olhos e a viagem de volta no carro com a coxa do negro colada na sua.
Na primeira vez, Rogério não vira o tal negócio elétrico. Nem o Glenn Ford. Mas ele voltaria à sala atapetada. Não ser parente do Alcebíades, aparentemente, era um erro.
Estranho. Rogério nunca sonhava com sua prisão. Não sonhara nem no exílio. Mas tinha um sonho recorrente. Seu pai repreendendo-o, dizendo “Nós criamos você pra cuidar da fazenda, e veja o que você fez. A fazenda está abandonada. Não tem ninguém cuidando da fazenda!”. E ele tentando esconder o rosto.
Não sabia o que significava o sonho. A família nunca tivera fazenda. Seu pai nunca fora dono de nada, além da casa com a oficina no fundo. “E agora?”, dizia o pai no sonho. “Vou voltar do exílio e vou pra onde?”
Miro não descobrira nada sobre o histórico do prédio. Provavelmente nem tentara. A mãe dele tinha uma vaga ideia de ter alugado dois andares para uma firma de dedetização, ou coisa parecida. E só. Na vizinhança do prédio, ninguém se lembrava de vê-lo ocupado. Rogério tirou uma tarde para ouvir a vizinhança.
No lado oposto da rua, descobriu uma senhora que morava ali desde 1950.
— Fins dos anos 60, começo dos anos 70. A senhora não se lembra de movimento no prédio? Carros chegando. Gritos lá de dentro.
— Gritos?
— Movimento. Carros chegando e saindo.
— Não. Desde que eu me lembro, aquilo só é depósito de lixo.
— Tem certeza?
— Anos 70, meu filho. Quem é que se lembra dos anos 70? Eu não lembro mais nada.
— Derruba logo esse prédio, Rogério — disse Alice. — O terreno parece bom. Vende para uma construtora. Ou constrói você mesmo.
— Você quer ir lá olhar?
— Olhar o quê?
— A peça. A mancha. Pra ter uma ideia.
— Eu não! Estou te dizendo pra esquecer e você me pergunta se eu quero ver? Você nem sabe se é o mesmo prédio. E fica aí remoendo o passado.
— Eu sei que é.
— Então esquece. Põe abaixo. Não fica remoendo.
— É o meu sangue que está lá no chão, Alice.
— Não é. E se fosse, de que adiantaria? Você quer o sangue de volta?
— Não é isso.
— O que é então?
— Não é isso.
— Tenta esquecer, Rô. Fazia anos que a gente não tocava nesse assunto. Por que ficar se atormentando agora? É tudo passado. Deixa o passado no passado, que é o lugar dele. Ou destrói e constrói outra coisa mais bonita no lugar. Não é o que você faz?
O Glenn Ford fizera uma cara de nojo, depois de impaciência.
Acertara sem querer no nariz, que começara a sangrar.
— Olha o que você está fazendo no tapete.
Era como a sua mãe, reclamando da sua sofreguidão ao comer pêssego. Ele sempre sujava a camisa. Um dia ainda iria engolir o caroço e morrer engasgado.
— Põe a cabeça pra trás.
O Glenn Ford tentara forçar sua cabeça para trás mas as algemas presas num pé da cadeira de ferro mantinham a sua espinha arqueada e a cabeça pendente. O sangue pingava diretamente no chão.
— Olha que cacaca. Ó Bedeu, pega um pano molhado.
O negro demorou para sair do sofá mole. Quando voltou com um pano molhado já havia uma poça de sangue no carpete. O Glenn Ford apertou seu nariz com o pano molhado. O pano ficou empapado de sangue. O Glenn Ford desistiu.
— Tira este filho da puta daqui. Deste jeito não adianta.
No carro, o negro segurou o pano contra o seu nariz. Disse, como se fosse o parecer de um velho observador de interrogatórios, ou um reconhecimento de que, apesar da revolta do Glenn Ford, a culpa por sangrar tanto não era do Rogério:
— Nariz é foda.
Foram as únicas palavras que Rogério e Rubinho ouviram o negro dizer, no tempo todo.
Os dois eram levados para interrogatório em dias alternados, ou um de manhã e o outro à tarde. Um dia Rubinho foi levado e não voltou. Dezoito anos depois, num 2 de janeiro, Rogério viu no jornal a foto do primeiro bebê nascido na cidade naquele ano-novo, poucos minutos depois da meia-noite. O bebê, chamado Sidnei, no colo da mãe. A mãe olhando ternamente para o bebê. E ao lado da mãe, sentado na cama, olhando para a câmera e sorrindo com orgulho, o Rubinho! Identificado na legenda como o pai da criança, Alcides Sunhoz Filho, jornalista. Parecia mais gordo mas não mudara muito. A mesma testa alta, as mesmas orelhas grandes. Não havia dúvida, era o Rubinho. Foi fácil para Rogério localizá-lo. Marcaram um encontro.
— Eu não me lembrava do seu nome — confessou Rubinho, quando se encontraram.
— Eu nunca esqueci o seu. Só que era um nome falso.
— Pois é. Nem me lembro por que “Rubinho”. Não tinha nada de heroico, né? O perigoso revolucionário Rubinho.
— O que você faz?
— Sou RP de uma empresa. Jornalismo, mesmo, não deu mais.
— Você ficou preso, ou...
— Fiquei, por um tempo. Depois me soltaram. Você?
— Fiquei uns anos fora do país. África, depois Europa.
— E fez o quê, na volta?
— Enriqueci.
O outro riu, e não pediu mais detalhes. Contou a sua experiência.
Voltara ao jornalismo e chegara a ter uma coluna assinada, mas com pseudônimo. Pois é, outro codinome. Escrevia sobre cinema. Rogério talvez a tivesse lido, às vezes. Ele assinava-se Marcello. Homenagem ao...
Rogério de boca aberta. Outra coincidência.
— Você não vai acreditar. Sabe que você é responsável pelo meu namoro com a minha mulher? A primeira conversa que tivemos foi uma discussão sobre a sua coluna. Um filme que você e ela tinham amado e eu tinha odiado. E o Marcello era você! Olha só.
O sorriso orgulhoso do Rubinho era o mesmo da foto na maternidade.
Tinham trocado endereços, telefones e promessas de fazerem alguma coisa juntos, assim que o recém-nascido Sidnei deixasse a mãe sair de casa. A Alice ia adorar conhecer o “Marcello”. Mas em quinze anos não tinham se visto mais. Agora Rogério procurava o nome verdadeiro do Rubinho na lista telefônica. Como era mesmo?
Arlindo Soares. Alcino Sunhê. Alguma coisa assim. Então lembrou-se de que tinha tudo anotado numa agenda. Costumava guardar suas agendas, em ordem, por ano. Em que ano fora aquele encontro? 87 ou 88. E ele anotara qual nome, sob que letra? Procurou Rubinho.
Lá estava (Rubinho), depois (Marcello!), entre parênteses, e Alcides Sunhoz, com o endereço e o telefone. Ligou para o número, acrescentando o prefixo que ainda não existia na época. Quem atendeu tinha voz de adolescente. “É o Sidnei.”
— Seu pai está?
Alcides Sunhoz também custou a se lembrar.
— Quem é, mesmo?
Depois se lembrou. Claro, claro, poderiam se encontrar. Mas Rogério notou uma ponta de irritação na sua voz. Ele provavelmente também achava que lugar do passado era no passado.
— Como está o Sidnei?
— Está ótimo.
— Ele está com quê, 15 anos?
— Quinze. E você, tem filhos?
— Uma filha. Doze anos. Amanda. Mimadíssima. Sabe como é, filha única de pai velho...
— Sua esposa é...
— Alice. Você não chegou a conhecê-la, da outra vez. Ela gostava muito do que você escrevia, sobre cinema. Nós gostávamos. Você nunca escreveu mais nada?
— Nada. Nem vou mais a cinema.
— Escuta.
— Culturalmente, virei uma batata. Politicamente também.
— Escuta. Naquele nosso encontro, não chegamos a falar muito sobre a nossa experiência em comum. Na cela, e naquele lugar que nos levavam. Que o Bedeu nos levava.
— Porra. Bedeu. Esse nome eu nunca vou esquecer.
— E o Glenn Ford?
— Glenn Ford?!
— Lembra? O mais filho da puta. O que gostava de bater.
— É mesmo! E sorria só prum lado. O outro, o magrinho, o Wilson Grey, usava um porrete, mas batia mais na cadeira do que na gente. Era a ideia dele de coação psicológica. Sempre de paletó e gravata, lembra?
Ele ficou sério. Quando falou outra vez, foi com a voz embargada. Talvez fosse a primeira vez que falasse naquilo com alguém.
— Sabe que eu não me lembro de ter medo? Tinha raiva. Nunca sabia o que ia acontecer, se iam nos matar ou não. Mas não tinha medo. Você?
— Eu ficava apavorado no carro. Com os olhos vendados, sem saber exatamente para onde estavam nos levando. Lá, na cadeira, o sentimento era de ultraje. A palavra é essa. Desamparo e ultraje. Mas pelo menos nunca usaram o dínamo, lembra? Devia estar estragado.
Rogério viu que o outro tinha baixado a cabeça. Estava de olhos fechados, com o queixo enterrado no peito, obviamente tentando se controlar.
— Desculpe, eu... — começou Rogério.
Rubinho sacudiu a cabeça e fez um sinal de “tudo bem” com a mão. Mas levou algum tempo até conseguir falar.
— O que nos fizeram, não é mesmo? — disse, finalmente. — O que nos fizeram.
— Escuta...
— Terrível, né? De tudo aquilo, o que ficou foi a autopiedade. Olha aí, estou até tremendo. Nada foi conquistado, nada foi purgado. Só nos quebraram.
— Escuta. No outro dia, por acaso, eu descobri a sala.
— A sala?
— Onde nos interrogavam. A da cadeira de ferro e do carpete.
— Não me lembro de nenhum carpete.
— Identifiquei a sala pela mancha de sangue no carpete. E por uma mancha na parede.
— Não me lembro de mancha de sangue.
— Quando eu sangrei do nariz, lembra? Quando o Glenn Ford me acertou o nariz.
Rubinho pôs-se de pé. Estavam num café, tinham dividido uma cerveja. Rogério segurou o seu braço para detê-lo.
— O que você quer? — perguntou Rubinho. — Tenho que ir embora. Um relações-públicas depressivo não serve pra nada.
— Eu queria que você visse a sala.
Rubinho livrou seu braço da mão de Rogério.
— Pra quê? Pelos velhos tempos? O que você quer fazer? Quer que aquilo signifique alguma coisa? Não significou nada. Só significou que nos pegaram e nos quebraram.
— Eu queria que você também identificasse a sala.
— Eu tenho que ir embora. Quanto é essa merda?
— Eu pago.
— É mesmo, você é rico. Então paga. Nós não temos nada em comum, está entendendo? Ficarmos na mesma cela significou tanto quanto, sei lá. Meu filho ser o primeiro bebê a nascer no estado em 1988. Foi uma casualidade, significando nada.
— Senta aí, pô. Vamos conversar.
— Conversar sobre o quê? Não sei qual é a sua intenção, mas não me inclua nela. Não me lembro de nada daquela sala. Só da cadeira de ferro.
Mas Rubinho sentou-se outra vez. Bebeu o resto de cerveja do seu copo como um sinal de que aceitava recomeçar a conversa, mas a contragosto. Rogério pediu outra cerveja ao garçom.
— Quem eram aqueles caras? — perguntou. — Eu fui preso pelo Exército, mas eles não eram Exército. Nem DOPS. Quem eram?
— Era uma coisa clandestina. Tinha gente do Exército, gente da polícia, mas era informal, clandestino. Os empresários tinham feito um fundo... Diziam que alguns até participavam das sessões de tortura.
— Eu nem sabia o que eles queriam saber. Não pertencia a nenhum grupo. Apanhei para revelar o que não sabia.
— Do meu grupo, que eu saiba...
Rubinho fez uma pausa, depois completou, olhando para o copo:
— Só sobrei eu. Que eu saiba.
— Você continuou sendo torturado? Depois que não voltou mais para a nossa cela?
— Não. Na minha última sessão na cadeira de ferro perdi os sentidos. Acordei num hospital. Depois fiquei preso num quartel mais algumas semanas e me soltaram. E você, continuou a apanhar?
— Houve mais umas duas sessões. O Glenn Ford teve o cuidado de não me fazer mais sangrar. Dois dias depois da última sessão eu estava num avião para Portugal, a caminho da ilha do Sal.
— E agora? Você descobriu a tal sala. E daí?
— Eu comprei a tal sala.
— Comprou?!
— Comprei o prédio. É o que eu faço. Compro coisas passadas e transformo em coisas novas. Ou destruo e faço outras.
Rubinho continuava a olhar para o seu copo. Depois de um minuto, perguntou:
— Onde fica esse prédio?
***

Seu Afonso precisava de uma definição. Se não fossem começar a obra naquela semana, ele tinha outros serviços para a sua turma. E então estariam ocupados por dois meses, talvez mais. Rogério propôs que começassem a tapar os buracos e a raspar as paredes para a pintura mas não tocassem na sala de frente do primeiro andar. A do carpete.
— O senhor não acha melhor botar todo o prédio abaixo?
— Isso a gente vê depois.
— Vamos restaurar e pintar essa monstruosidade, e depois, talvez, demolir?
— É, seu Afonso. Quando eu decidir o que fazer, lhe aviso.
— Vamos ver no que vai dar — suspirou seu Afonso.
A mãe de Rogério costumava dizer que era um erro chamar velhice de “idade avançada”. Era “idade atrasada”, isso sim. E ela se transformara numa prova disso, esquecendo coisas, trocando nomes, comportando-se como uma criança. Ultimamente dera para resistir às frequentes idas à casa do irmão de Alice, que gostava de reunir a família com qualquer pretexto e sempre insistia na presença da dona Dalvinha, a sogra da irmã.
— Nós não somos do mesmo nível deles, Rogério. Eu não me sinto bem.
— Que bobagem é essa, mamãe? A senhora sempre gostou da família da Alice. E agora vai conhecer a casa nova do Léo. O lugar é muito bonito. Um condomínio horizontal, lindo.
— Eu não me sinto bem, meu filho. Ele é tão rico.
— Mamãe, eu sou mais rico do que ele.
— Eu sei. Mas mesmo assim.
Era aniversário do cunhado. No meio do churrasco, Léo gritou para a mãe do Rogério, que até ali recusara tudo o que lhe ofereciam e confessara para o filho, num cochicho, que esquecera como usar talheres:
— Dona Dalvinha, convença esse seu filho a tirar umas férias. A Alice diz que ele anda impossível.
— Ele sempre foi assim. Quando era garoto...
— Iiih — anunciou Amanda. — Lá vem a história do pêssego!
— Ele comia pêssego como se fossem roubar da mão dele. Sujava toda a camisa. Só faltava morrer engasgado com o caroço, por mais que eu avisasse.
De todos os desgostos que Rogério, o único filho, dera aos pais, incluindo o envolvimento em política, a prisão e o exílio, dona Dalvinha escolhera a história do pêssego para anular todas as outras. O pai de Rogério era carpinteiro. Morrera quando ele estava no exílio. Só ao embarcar para Portugal, com a roupa do corpo e o corpo ainda dolorido da tortura, o nariz ainda inchado, Rogério descobrira que o pai pertencia a uma organização religiosa com ramificações internacionais e através dela conseguira seu exílio, que iniciara em Cabo Verde. E só na volta ao Brasil descobrira que o pai lhe deixara uma razoável herança em dinheiro, com a qual começara a comprar propriedades para revender, e a enriquecer com a sofreguidão com que se atirara na política e comia pêssego. As cartas do pai para o filho exilado eram secas, mal-escritas. Ele tentava catequizar o filho, convencê-lo a esquecer a política e se dedicar à religião, e expiar o desgosto que causara nos pais. Na religião encontraria o que procurava com tanta ansiedade, a salvação, a justiça, o que fosse. Dona Dalvinha resumira tudo na história do pêssego.
O cunhado tinha convidado alguns dos seus novos vizinhos para o churrasco. Gente do condomínio. Um deles era um empresário aposentado, ainda vigoroso nos seus setenta e poucos anos, que apresentou como “Cerqueira, um fera no tênis”. Cerqueira tinha um olhar de águia e uma cara esculpida em pedra, e depois do almoço, numa roda formada por espreguiçadeiras sobre o relvado, declarou para quem ainda estava acordado que não tinha escrúpulo de se declarar um direitista. Era de direita e se orgulhava disso. Marchara pelo Brasil em 64 e marcharia de novo pelos mesmos ideais. E mais. Achava que a história ainda faria justiça à revolução e ao regime militar, que tinham livrado o Brasil do comunismo e da anarquia e modernizado o país.
O cunhado levantou a cabeça, procurou Rogério por cima da borda da sua espreguiçadeira com um olhar malicioso e perguntou:
— Você concorda com isso, Rogério?
— Depois de um churrasco destes, concordo com qualquer coisa.
— Não. Sério.
— Concordo, concordo com tudo.
— Viu só, Cerqueira? O que faz o dinheiro. Nada mais de direita do que um esquerdista que enriqueceu.
Cerqueira não entendeu. Parecia não ter nenhum senso de humor.
— Não tem nada a ver com dinheiro. Não estávamos defendendo o capitalismo. Estávamos defendendo a liberdade. Quebramos algumas cabeças? Quebramos. Mas ninguém recebeu mais do que merecia. Eles queriam uma guerra e tiveram uma guerra. E perderam.
Rogério conseguiu enlaçar Amanda, que passava correndo pela espreguiçadeira junto com um primo e um menino mais velho.
— Me solta, pai!
— Fica um pouquinho com seu pai.
— Não posso!
— Então dá um beijinho.
— Saco. Toma. Pronto.
O cunhado estava contando que Rogério tivera problemas, durante o regime militar.
— Quem é Rogério? — perguntou Cerqueira.
— Eu aqui — disse Rogério, levantando o dedo.
— Sei — disse Cerqueira. E não quis saber dos problemas.
Rogério:
— Ouvi dizer que os empresários tinham um fundo para ajudar na repressão. Um fundo que financiava ações clandestinas.
— Nós ajudamos a reprimir a subversão. Não vou negar. Ajudamos mesmo. Nos engajamos na luta contra o comunismo, e fizemos muito bem. Um dia ainda vão nos agradecer.
Do fundo da sua espreguiçadeira, Rogério não viu quem disse:
— Mas os esquerdinhas estão de volta...
Podia ser o pai da Alice.
— O comunismo é como o resfriado — disse Cerqueira. — Enquanto não inventarem uma vacina...
Cerqueira tinha senso de humor, afinal. Continuou:
— Eles podem voltar, mas nós também ainda estamos aqui!
E ergueu o braço dramaticamente, como se empunhasse uma bandeira. Rogério ouviu risadas e aplausos de dentro de mais de uma espreguiçadeira. Cerqueira tinha fãs no condomínio.
— Mas hoje eles é que estão por cima, seu Cerqueira.
— É o que eles pensam!
E o cunhado contou que Cerqueira ia propor a instalação de um alarme no pórtico de entrada do condomínio para disparar toda vez que se aproximasse um esquerdista, mas que ele vetara a ideia por questões familiares. Mais risadas das espreguiçadeiras.
Já era noite quando voltaram para casa.
Amanda dormindo no banco de trás, com a cabeça no colo da avó.
— “Saco.” Onde é que essa menina aprende a dizer coisas assim?
— O quê? Elas dizem coisas muito piores. Você não sabe porque quase não convive com ela.
— E quem era aquele garoto que não largava dela?
— É neto do Cerqueira. Aquele velho com cara de...
— Eu sei quem é. O neto deve ter uns 20 anos.
— Não exagera. Tem 14. Eu conheço a mãe dele.
— De onde?
— Do artesanato. Do cabeleireiro. A gente se encontra muito.
— Você convive com cada um...
— Ela é muito simpática. E essa é a nossa gente, Rô. É a nossa classe. É a sua classe.
— Minha, não. Eu só estou nela como ouvinte.
— Isso não existe, Rogério.
Do banco de trás, dona Dalvinha se manifestou:
— Seu pai dizia que os pobres ficarão com a Terra.
— Menos os condomínios fechados, mamãe — disse Rogério.
— Não sei. Puta que os pariu, não sei.
Rubinho tinha parado na porta. Já dissera “Não sei” várias vezes.
— É a mesma sala ou não é?
— Não sei. Eu não me lembrava do carpete.
— Olha ali a mancha de sangue.
— Como é que você sabe que é sangue? E que o sangue é seu?
— A cadeira de ferro era ali. Eu me lembro da mancha que ficou na frente da cadeira. Parecia o mapa da Austrália. E olha. Ali na parede. O Don Quixote.
— Onde?
— Ali. O perfil do Don Quixote, sem tirar nem pôr.
— Não estou vendo.
— Por amor de Deus. O nariz, a barba...
— É. Pode ser.
— Pode ser, não. É.
— Eu não vejo. E esta porta não era aqui.
— Claro que era. Essa porta dando para o corredor, a outra dando para o banheiro.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Não sei. Eu me lembrava de uma sala maior...
Ficaram conversando no quintal de terra batida na frente do prédio. Lá dentro, a turma do seu Afonso estava em ação, raspando paredes e obturando buracos. Menos na sala do carpete. Ordens do seu Rogério. Não tocar na sala do carpete.
— Me lembro de ficar olhando para a cara do Bedeu, tentando algum tipo de contato — disse Rogério. — Pensando em perguntar qual era o time dele. Qualquer coisa que nos aproximasse. Como brasileiros. Sei lá, como gente. E ele impassível, afundado naquele sofá. Era o único que a gente conhecia pelo nome, lembra?
— Mas ninguém tapava a cara. Ninguém usava disfarce. O Glenn Ford, o Wilson Grey... Era de cara aberta. Acho até que o Wilson Grey se barbeava por nossa causa.
— E usavam esta sala de frente. No primeiro andar. Não se importavam que ouvissem os nossos gritos. Sabiam que ninguém na vizinhança iria fazer perguntas.
— Mas nos vendavam os olhos para vir até aqui. Curioso, né? Não tinham problema em mostrar a cara mas não queriam que se identificasse o edifício. Se é que o edifício é este mesmo.
— Porque um edifício fica. Também envelhece e se deteriora, como as pessoas, mas fica. Continua onde estava durante toda a história. Fica para lembrar a história. Os Glenn Fords e os Wilson Greys e os Bedeus mudam de cara, desaparecem. Saem da história. São absorvidos pelas outras caras. Absolvidos pelo tempo. Pelo esquecimento. Mas um edifício fica. Para lembrar.
— Mesmo que não se saiba bem o quê.
Rogério continuou:
— Um dia, faz anos, eu até pensei ter visto o Glenn Ford na foto de uma solenidade na polícia. Alguém tomando posse ou coisa parecida e ele lá atrás, esticando o pescoço, se esforçando para aparecer na foto. Se esforçando para voltar à história, o coitado.
— Coitados de nós. Coitados dos quebrados. Eu contei que todos do meu grupo desapareceram? Esses, sim, saíram da história.
— Morreram?
— Não sei. Nunca mais soube de ninguém.
De novo o olhar desviado. Os olhos baixos.
Rogério não fez a pergunta: foi você que entregou?
— Você disse “Nada foi conquistado, nada foi purgado”.
— Disse? Foi um descuido. Me emocionei e esqueci que não sou mais um intelectual. Queria dizer que só o que ficou daquilo foi a autopiedade. Foram estas nossas lamúrias. Nem cicatriz eu tenho. Pelo menos nenhuma que apareça.
— Mas alguma coisa aconteceu. Não só a nós naquela cadeira de ferro. Ao país, a toda uma geração. Foi isso que eu senti quando vi a mancha no chão. Porra! Alguma coisa tinha havido, e deixado uma marca. E esquecer isso era uma forma de traição.
Rubinho não gostou da palavra.
— E o que foi traído com o esquecimento? A nossa causa? Eu nem sei se a sua causa era igual à minha. O seu sangue? Você nem sabia por que estava apanhando e eles não sabiam que você não sabia. Foi isso o traído? É essa a história que não devemos esquecer, esse choque de ignorâncias?
Seu Afonso tinha saído de dentro do edifício em obras coberto de pó. A cara branca enfatizava o seu desconsolo cômico de palhaço. Parara ao lado dos dois e esperava a vez para falar. Rubinho continuou:
— Sabe qual foi a única coisa que eu consegui avisar para o meu irmão quando me prenderam? “Esconde o Lukács!” A casa estava cheia de indícios da minha participação no grupo e até de planos de ação do grupo, mas eu só me lembrei dos meus livros. Porque eu me sentia muito mais revolucionário lendo do que agindo. Entende? Era a minha forma de ignorância. Mas nem o Glenn Ford nem o Wilson Grey estavam muito interessados em estética marxista. O Bedeu, eu não sei.
Por isso você entregou o grupo, pensou Rogério. Foi a sua forma de traição. Mas não disse isso. Disse:
— O que é, seu Afonso?
— Doutor, não dá pra fazer nada que preste com esta monstruosidade. Vamos derrubar?
Rubinho respondeu por Rogério:
— Vamos.
— Calma, seu Afonso — disse Rogério. — Calma.
— Acho uma grande ideia, seu Afonso — disse Rubinho. — Põe tudo abaixo. É a única coisa a fazer com monstruosidades. Pôr abaixo, esquecer e começar tudo de novo. Sem vestígios do passado.
A adesão de um aliado não melhorou muito o humor do seu Afonso, que voltou para dentro do monstro ainda mais desconsolado.
— E afinal é ou não é a sala em que nos torturaram?
— Que diferença faz? O que você quer fazer com ela? Esquece. Põe abaixo.
— É ou não é?
— Meu voto é não. Mas, e se fosse? Não significa nada.
— Pra mim significa. Não sei o quê, mas significa. Tem que significar.
— Não significa. Nada mudou, nada avançou, nada foi purgado. Houve uma guerra que a vizinhança nem notou. Mal ouviram os gritos. No fim da guerra nenhum território tinha sido conquistado ou cedido e vencidos e vencedores pegaram seus mortos e seus ressentimentos e voltaram para os seus respectivos países, que é o mesmo país! Mais estranho do que guerras que não resolvem nada é essa nossa paz promíscua, vencedores e vencidos convivendo sem nunca saber bem quem é o quê. No Brasil é sempre assim, e sabe por que no Brasil é sempre assim? Porque você queria perguntar ao Bedeu qual era o time dele. Queria mostrar que vocês dois eram da mesma espécie, que só aquilo tinha importância porque a guerra era de mentira mesmo. Ou queria a vitória das boas almas: não ganhar, mas dar remorso no inimigo. É o que você quer agora. Quem sabe reconstituir a sala? Reproduzir a cadeira de ferro e o sofá, dar um brilho na mancha de sangue no carpete, encenar o Glenn Ford e o Wilson Grey nos dando porrada. Talvez convencê-los a desempenhar seus próprios papéis, já que estão aí, abandonados pela história. Depois de serem os personagens mais importantes das nossas histórias, os coitados. Uma reunião sentimental: você, eu, o Glenn Ford, o Wilson Grey e o Bedeu, juntos outra vez, para as novas gerações. Isso se algum de nós ainda estiver vivo, claro.
Rubinho parou de falar. Tinha se exaltado. Se emocionado de novo.
— Só o que eu quero é não esquecer. Esquecer é trair — disse Rogério.
— A diferença é essa — disse Rubinho, em outro tom. — Você quer que seja a sala, eu não quero. Você quer se lembrar, eu não quero. Sabe por quê? Meu filho, o Sidnei, está tentando me ensinar a lidar com o computador. Ele sabe tudo, eu não consigo aprender. E ele me disse por quê. Disse: “Pai, você tem uma mente defensiva.” É exatamente isso. Desenvolvi uma mente defensiva como um condomínio fechado. Uma mente com guarita, que abate qualquer inimigo na porteira. Novas técnicas, lembranças, ideias, tudo que possa perturbá-la e solapar sua burrice assumida é abatido na entrada. Durante algum tempo me refugiei no cinema, na literatura, depois resolvi ficar burro. Me refugiar na burrice. Meu único objetivo na vida é ser um simpático profissional até poder me aposentar. E do jeito que o Sidnei é bom no computador, acho que em breve ele vai poder nos sustentar e a minha aposentadoria virá mais cedo. Pergunta como eu vou acabar os meus dias.
— Deixa pra lá.
— Pergunta. Vou plantar macieiras. A família da minha mulher tem terras numa região alta e fria, ideal para maçãs. Quando não estou sendo simpático, inventando mentiras burras e promovendo eventos burros para os meus patrões, leio tudo o que posso sobre maçãs. São as únicas novidades que passam pela guarita sem serem abatidas. As macieiras serão o meu exílio tardio. Você se exilou da guerra, eu vou me exilar da paz. E estou até pensando em mudar de nome.
— Outro codinome...
— É. O último.
Despediram-se com promessas de se encontrar em breve. Os dois casais. Quem sabe um jantar? Alice precisava conhecer o “Marcello”. Aquele pseudônimo era em homenagem a quem, mesmo? Ao Mastroianni? Não, ao repórter que o Mastroianni interpretava em La dolce vita, lembra? Claro. Quem poderia esquecer. Mas sabiam que nunca mais se procurariam.
Antes de ir para o seu carro, já cruzando o muro do quintal, Rubinho apontou para o prédio e gritou:
— Dinamita!
E Rogério sorriu e abanou, pensando “Pelo menos ele sabe que a culpa dele seria soterrada nos escombros. E a minha culpa, qual é?”
No sonho, ele escondia o rosto do pai, que dizia “Para onde eu vou voltar, sem a nossa fazenda? Eu preciso de um lugar para voltar!” Ele se contorcia, para escapar da cobrança do pai. Alice sacudiu-o.
— Que foi?
— Você estava tendo um pesadelo, Rô. Se debatendo. E com esses dentes trincados!
Rogério decidiu: mandaria demolir o prédio. Mas, antes de poder dar a ordem ao seu Afonso, teve uma surpresa. Foi procurado por Miro, que cumprira sua promessa e encontrara dados sobre os aluguéis no prédio herdado pela sua mãe. Aparentemente a velha era mais organizada do que se pensava e guardava toda a papelada em grandes latas quadradas de biscoito. Só custara um pouco a se lembrar que fazia isso, e mais um pouco para se lembrar onde estavam as latas. Os papéis, apesar de velhos, conservavam o cheiro bom das latas. Rogério descobriu que de 1968 a 1972 todo o primeiro andar do prédio tinha sido alugado por alguém, um homem, com atividade desconhecida que pagava em dia. O sobrenome do homem não era comum. Rogério sabia de apenas uma pessoa com aquele sobrenome.
— Flama não era um sócio do seu pai?
— Era. Meu Deus, o seu Flama. Há quanto tempo eu não ouvia esse nome. O seu Flama e a dona Ester. O Léo dizia que a dona Ester cheirava a velório. Só porque um dia foi a um velório e descobriu que o cheiro era igual ao da dona Ester. Por quê? Ele morreu?
— Não sei. É que...
— Espera aí. Morreu, sim. Já faz algum tempo. Acho que ela também.
— Ele foi sócio do seu pai de quando a quando?
— Ele fundou a firma com o papai. Tanto que, no princípio, o nome dele vinha na frente. Ficou na firma até, até... Não sei. Por quê?
— Nada. É porque eu vi o nome dele nuns papéis e não sabia se era a mesma pessoa. Arthur Flama.
— Que papéis?
— Uns papéis. Uma propriedade que eu estou vendo.
— Eles moravam num casarão. Acho que ainda é da família. Foi uma das primeiras casas com piscina da cidade. Não me diz que a casa está abandonada.
— Não, não.
— Aquela parte da cidade está se deteriorando. E já foi o bairro mais nobre. Como este nosso, que também está indo pelo mesmo caminho...
Rogério rodando pela cidade. Um cachorro faminto em torno do refeitório, esperando encontrar um naco do que ninguém mais quer, qualquer coisa cuspida fora. O alimento que o enriquece. O rebotalho da cidade. A sua causa misteriosa, que nem ele entende. Comprar o passado, renovar, vender e enriquecer mais. Ou comprar o passado, destruir, e pensar no que fazer com o vazio.
O vislumbre de uma fachada podre no meio de um quarteirão o faz entrar na contramão para investigar, e ele bate de frente num táxi. Alice não pode ir buscá-lo na oficina para onde levaram o carro porque tem a apresentação de balé da Amanda, ele esqueceu? Ele esqueceu. Rogério, você não pode continuar assim. Você ainda vai se matar. A ausência no balé lhe vale três dias de silêncio emburrado da Amanda. Amêndoa, Amandinha, Amandíssima, não odeie o seu pai. Vamos viajar, Rogério. Vamos levar a Amanda e viajar. Daqui a pouco ela entra em férias e poderemos viajar os três juntos. Você precisa passar mais tempo com ela, Rogério. Não precisa ganhar mais dinheiro. Já tem dinheiro que...
— Você perguntou ao seu pai?
— O quê?
— Sobre o Flama.
— Não, esqueci. O que você quer saber, mesmo?
— Em que período eles foram sócios.
— Por quê, Rogério? Me diz por quê.
— Só para saber. Só isso.
— Nós vamos lá amanhã. Pergunte você mesmo.
Almoço de domingo na casa dos sogros. Amanda não precisa de muito convencimento para repetir o seu número do balé. Todos aplaudem com entusiasmo e concordam que ela é uma grande bailarina. Depois do número, distraída, ela corre e se atira no colo do pai, que aproveita para beijá-la repetidamente como um fã frenético, fazendo-a rir. Subitamente ela se lembra, “Nós estamos de mal!”, e pula fora. Rogério começa a dizer para o sogro que quer lhe perguntar uma coisa, mas este o interrompe com um gesto da mão e pergunta para a filha, do outro lado da sala:
— Você já falou pro Rogério da nossa ideia?
— Qual é a ideia?
— Estamos pensando em comprar um terreno no condomínio do Léo para construir e pensamos: por que não comprar dois terrenos e construir duas casas ao mesmo tempo? Diminuiria o custo. O que você me diz?
A sogra tem o seu argumento pronto:
— Para a Amanda seria ótimo. Estaria perto dos primos...
— Olha, eu até hoje não tinha visto coisa igual, em matéria de condomínio horizontal — continua o sogro. — Me apaixonei pelo lugar. E a segurança é total. Hoje em dia isso é primordial. E então?
— Não — diz Rogério.
— Não?
— Não, a Alice não tinha me falado na ideia.
— Bom, pensem a respeito. O Léo já viu dois terrenos ótimos. Perto do lago e perto do deles.
— Vamos ver.
— Pensem bem, pensem bem. O que você ia me perguntar?
— Não. Era sobre o Flama. Ele foi seu sócio até quando?
— O Flama? Deixa ver... Puxa. Um nome do passado... Por que você quer saber?
— É que, esses dias, eu vi o nome dele nuns papéis e fiquei curioso. Não é um nome comum.
— Arthur Jaguaré Flama. Não era um homem comum, também. Tinha convicções fortes. Nós todos tínhamos, na época. E o Flama era, um pouco, nosso líder. Nosso orientador. Se essa é a palavra. Um pouco celerado.
— Ele foi sócio da firma até quando?
— Até 81, 82, por aí. Depois se aposentou e morreu há uns dez anos.
O sogro subitamente se lembra do que sabe da vida de Rogério e olha-o com apreensão. Pergunta:
— Vocês andaram se cruzando por aí?
— Não, não. Eu não o conheci.
Do outro lado da sala, Alice, que não perdeu uma palavra da conversa, comenta:
— Ainda bem que esse tempo já passou.
Naquela noite, na cama:
— Que história é essa com o Flama?
— História nenhuma.
— Por que você quer tanto saber quando o papai e o Flama foram sócios?
— Curiosidade, Alice. Só curiosidade.
— Tem a ver com o edifício da mancha, não tem?
— Alice...
— Você ainda não demoliu o prédio, Rogério?
— Não. Vou demolir. Eu só...
— O quê?
— Eu preciso saber, Alice. Tente entender.
— Saber o quê, Rogério? Deixe o passado no passado. O que eu preciso entender?
— Alguma coisa aconteceu naquele prédio. Me aconteceu. Aconteceu pra nós todos.
— Mas já passou, Rô. Passou do prazo. Como um enlatado. Ficou tóxico. Hoje só vai nos envenenar. E pra quê? Por quê? Só porque você acha que é o seu sangue naquele carpete?
Rogério ergueu-se da cama e pôs-se a caminhar pelo quarto. Não era a primeira vez que fazia isso.
— Rô...
— A sala do carpete foi alugada pelo Flama. Todo o andar foi alugado por ele, entre 1968 e 1972. Ele ainda era sócio do seu pai. Eu fui preso e torturado em 70. Só aparece o nome do Flama, mas existia um grupo de empresários que financiavam a repressão paralela.
— Você acha que o meu pai era um deles?
— Não sei. Você não ouviu ele dizer, hoje? Todos tinham convicções fortes e o Flama era o “nosso orientador”. Também era o que mostrava a cara, o que assinava os contratos de aluguel e fazia os pagamentos. Sempre rigorosamente em dia. Porque era o que tinha as convicções mais fortes. Mas o dinheiro não era só dele.
— E o que você quer, agora? Quer reparação? Quer vingança? Rô, só me diz uma coisa...
— E hoje estamos todos aqui, até pensando em morar juntos em volta de um lago artificial. Nossa paz é pior do que as nossas guerras.
— Me diz uma coisa.
— O quê?
— Vale a pena? Nos envenenar, envenenar tudo, deste jeito? Só porque você viu uma mancha?
— Não é só isso, Alice.
— É, Rogério. Só não é só isso se você não quiser.
— Morreu gente, Alice. Correu outro sangue.
— Faz muito tempo. Vem pra cama.
— Me sinto um traidor. Não sei do que ou de quem, mas um traidor.
— Isso passa. Vem pra cama.
— Você está me pedindo para esquecer.
— Não, Rô. Estou pedindo para você lembrar. Lembrar de nós, da sua filha, da sua saúde. Vem pra cama, vem.
E mais tarde:
— Rô...
— Hmm?
— Destrói aquele prédio.
Seu Afonso tinha encontrado uma espécie de motor, ou dínamo, enferrujado numa das peças de fundo do primeiro andar. Para o que serviria aquilo? Rogério disse que não sabia e anunciou que trazia uma nova ordem. “O senhor ganhou, seu Afonso. Pode demolir o prédio.” Se a notícia agradou ao seu Afonso, isso não chegou ao seu rosto. Ele suspirou, deu de ombros, e entrou no prédio para mandar parar a raspagem e os retoques. Murmurando: “Vamos ver no que vai dar.” Rogério ficou olhando o prédio de fora. Era realmente muito feio. Era monstruosamente feio e sem graça. Nada o redimia, não merecia ficar. Seus escombros, sim, serviriam para alguma coisa. Uma sepultura passageira, antes que também fossem retirados para o reaproveitamento do terreno. Uma breve tumba contendo o quê? O sangue de um, a culpa de outro e o remorso de ninguém. E um dínamo enferrujado.
“O que o senhor quer?” Pela primeira vez, no sonho, ele falava. “O que o senhor quer?” E pela primeira vez o pai não dizia nada. Só o acusava com os olhos. De tudo que ele não fizera. Do lugar para o pai voltar, quando tudo tivesse passado, que ele não providenciara. No fim do meu exílio você não pensou, diziam os olhos do pai.
— Você acha uma boa ideia, construir uma casa no condomínio do Léo?
— O que você acha?
— Eu confesso que não saio mais tranquila de casa, aqui no nosso bairro. Mesmo com os seguranças. E está tudo se deteriorando...
— Vamos ver.
— E para a Amanda seria ótimo. Ficar perto dos primos.
— Onde é que ela anda?
— Tinha uma festinha na casa do Dico.
— Dico. Esse eu não conheço.
— Conhece. É o neto do Cerqueira. São amiguinhos.
— Ele é um homem velho. Ela tem só 12 anos!
— Não é um homem velho. Tem pouco mais idade do que ela. E estão se dando muito bem. Aliás, ela achou péssima a ideia da viagem porque não quer ficar longe do Dico. Aonde você vai?
Ele tinha se levantado da poltrona mas não sabia para onde ir. Queria sair de carro, andar pela cidade, procurar edifícios mortos e jardins selvagens, inspecionar suas obras... Mas tinha jurado a Alice que pararia, que ficaria mais em casa. Rogério, o Demolidor, tentaria sossegar um pouco. Domar a sofreguidão. Pôs-se a andar pela sala, examinando tudo como se fosse a sua primeira visita.
— Rogério, liga a televisão. Vai ler um livro.
— Amiguinhos, amiguinhos... Não dizem que não existe mais namoro? Que já vai todo mundo pra cama, com qualquer idade?
— Sabe qual é outra boa razão para fazer uma casa no condomínio do Léo? Você vai poder fazer exercício. Caminhar nos bosques. Descarregar essa energia toda no tênis. Aposto que não vai mais dormir com os dentes trincados e ter pesadelos.
Tênis, pensou Rogério. Está aí uma boa causa. A última. Tênis. Não podia ser muito difícil. Era só emagrecer um pouco e voltar quarenta anos para buscar suas pernas. Iria aprender tudo sobre o tênis.
A demolição do prédio foi rápida. Seu Afonso contou: sabe aquela mancha no carpete, na sala da frente do primeiro andar? Atravessou o carpete e manchou o piso de madeira também. Rogério imaginou a mancha atravessando a madeira e o cimento e penetrando o chão sob o prédio, entranhando-se no chão sob os escombros. Todo sangue encontra o lugar da sua quietude. Onde lera aquilo? O lugar da quietude do seu sangue seria o esquecimento, embaixo da terra num bairro de surdos, quanto mais no fundo melhor. A traição desapareceria junto com o prédio. A traição viraria pó.
— O senhor mesmo vai construir aqui?
— Não, seu Afonso. Vou vender o terreno vazio.
— Não tem espaço para muita coisa...
— Talvez outra monstruosidade.
Seu Afonso suspirou.
Léo não podia se afastar da churrasqueira e pediu para o Cerqueira acompanhá-los até os dois terrenos. Era uma caminhada curta, sobre a relva. Os dois terrenos ocupavam uma elevação que começava na beira do lago. Cerqueira e o pai de Alice caminhavam na frente, comandando a subida. Talvez se conhecessem daquele tempo. Ou talvez o sogro não estivesse, afinal, envolvido nas atividades do seu sócio, o celerado Flama, naquele tempo. Mesmo tendo convicções tão fortes quanto as dele. Rogério não sabia. Também havia inocentes, naquele tempo. Os que não ouviam os gritos e os que não queriam ouvir. Agora não interessava mais. Estava tudo sepultado. E Rogério se sentia vitorioso. Tinha conseguido passar um braço pelos ombros da Amanda sem que ela o rejeitasse. E ela o abraçara pela cintura! Caminhavam assim, abraçados, na frente de Alice e da mulher de Léo, que subiam lado a lado, de braços cruzados, conversando, coisas de cunhadas, enquanto os dois filhos menores de Léo corriam à sua volta. Amêndoa, Amanda, Amandíssima, não era isto que eu imaginava para você, naquele tempo. Não era este país, não era esta falsa paz. Eu nem conhecia sua mãe e já pensava em você, e no mundo que eu queria lhe dar, naquele tempo. Você não existia e já era a minha causa. A minha primeira causa. Não consegui. Quebrei a cara. Ou quebraram o meu nariz. Em troca te dou este gramado, este sol, este lago, este país e este pai. Todos artificiais, mas o que se vai fazer? A nossa paz em separado. O país verdadeiro fica do lado de fora da cerca, mas os seguranças estão armados e têm ordens para atirar. E prometo que a nossa casa será a maior de todas. Enriqueci, Amêndoa. Desculpe.
Ele virou-se e perguntou para a mulher do Léo se era permitido fazer plantações no condomínio. O sogro ouviu e gritou:
— O quê? Rogério, o Demolidor, quer plantar?
— Que tipo de plantação? — perguntou Alice.
— Pensei em plantar macieiras.
— Macieiras?!
Cerqueira falou sem se virar. Com desprezo.
— Maçã só dá em lugares altos e frios.
Cerqueira tinha um perfil de águia e era o mais alto de todos. Apesar da idade, caminhava com mais energia do que os outros e chegaria ao topo da elevação primeiro. Eu vou te pegar, pensou Rogério. Vou aprender tênis, vou treinar com sofreguidão e vou te arrasar, velho filho da puta. Vocês não podem ser invencíveis em tudo.
No ponto mais alto dos terrenos Alice abriu os braços para a paisagem e disse:
— Olha que maravilha!
E Amanda confidenciou para o pai:
— Acho maçãs uma grande ideia.
Rogério beijou a testa da filha, quase em lágrimas.
No churrasco, Amanda advertiu:
— Não vai contar a história do pêssego de novo, vovó.
Dona Dalvinha não estava comendo nada. Mentira que tinha comido em casa. Cochichou para o filho que não se sentia bem com gente rica. O que o pai dele diria daquilo, daquela gente? Rogério lembrou-se de uma coisa e perguntou:
— Mamãe, tinha algum Alcebíades na nossa família?
— Claro. O seu tio Bia.
— O tio Bia se chamava Alcebíades?!
— Se chamava. Por quê?
— Nada, nada. Coma pelo menos a salada.


- Luis Fernando Verissimo, no livro "Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos".  1ª ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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