De como o velho Jossias foi salvo das águas - Mia Couto

©Tomás Santa Rosa (1943)

De como o velho Jossias foi salvo das águas


I — LEMBRANÇA DO TEMPO DE ANTIGAMENTE

A terra estava a conversar com Agosto e o velho Jossias, parado, escutava. Os meses estão todos no ventre uns dos outros, pensava ele. E adivinhava a chegada dos dias, suas roupas e cores. Sabia da chegada da chuva, pressentia as suas gotas timbilando (Timbila: xilofone de madeira) a areia.
— A água vai andar ter o chão. Vai lamber as feridas da terra, parece um cão vadio — dizia o velho.
E voltava ao silêncio, os olhos no alto a medir as nuvens, por precaução.
— Parece só metade da chuva. Há-de caber bem na terra.
Enquanto profetizava, amoleciam-lhe os olhos de promessas, uma procissão de verde a tomar-lhe conta dos sonhos.
— O milho vai-me tratar por senhor.
E era já gente grande, sorrindo do gozo antecipado da fartura. Assaltou-o a recordação da grande fome de há vinte anos. Foi-se rendendo ao sono, agora que o pensamento se deitara na sombra daquela lembrança.
Recordava-se bem: as cerimónias para pedir chuva sucediam-se em casa do régulo. As rezas eram palavras sem mais além: nem uma gota se convencera a descer. Durante mais três anos os velhos insistiram, conversando com os mortos que mandam na vontade da chuva.
Naquela manhã, logo cedo mataram o boi. As mulheres prepararam a aguardente do milho, o ngovo.
No cemitério os velhos pediam aos defuntos a licença da chuva. Depois das rezas, dariam de beber aos mortos deitando aguardente sobre as campas.
— Sou eu que vou levar as panelas do ngovo — ofereceu-se Jossias.
Deram-lhe a vaidade daquela entrega. Com respeito, ele partiu pela areia quente dos trilhos. No caminho, parou com pena do cansaço dos braços. Pesavam as panelas. O calor e a sede sopravam-lhe maus conselhos, barulhando convites.
Bebeu, fechando os olhos voz da aguardente. Repetiu mais três vezes. Certeiro, o álcool começou a cacimbar a razão. As panelas sorriam-lhe, mornas e gordas. Parecem a Armanda quando dança a provocação que ela sabe, murmurava.
— Vocês? Vocês estão-me sacudir o sangue!
Falava devagarmente, enrolando as palavras sem que a cabeça entrasse naquele pensamento. A voz de Armanda avisava-o do castigo, endireitando-lhe o juízo que faltava. E ele, outra vez para as panelas:
— Meninas, vocês estão desgraçar minha vida. Provocar-me da maneira como assim? É melhor marrar mais outra vez as capulanas. Vou acabar o serviço que fui mandado.
Quis-se levantar mas era um peso. Bebeu mas era só metade: o outro tanto entornava-se pelo peito. Quando reparou, a aguardente tinha quase desaparecido. Restava um quase nada lá no fundo dos potes. Entrou em pânico: como explicar aos velhos? Como contar à aldeia que o ngovo se desviara do seu destino? Tinha que encontrar maneira de emendar a boca, fechar a desgraça que ela destapara.
Passou por um poço abandonado e meteu-se por dentro do escuro. Lá em baixo, havia uma réstia de água estagnada, à espera da sua esperteza. Acrescentada daquela água mal-cheirosa a bebida do milho voltaria a encher os potes de barro. Os mortos não notariam a diferença, o paladar deles está já esquecido dos saborosos pecados.
Moda os mineiros, pensou enquanto descia pelas paredes do velho poço. Estava suspenso pelas mãos, os pés a procurarem o fundo, quando, de repente, as paredes desabaram. Caíram pareciam o céu inteiro a desfazer-se em areia e pó, o peso do mundo a pisar-lhe no peito. Mãe, vou ficar aqui em baixo de embaixo, ninguém que me vai encontrar, chorava Jossias.
E ali ficou imóvel, soterrado, dormindo no subúrbio da morte, expulso da luz e do ar. Horas de tempo, pensou no nunca mais. A lembrança de Armanda veio socorrê-lo. Agarrou-se à frescura da recordação, aquele rosto era a sua última crença.
E os outros quando viessem procurá-lo? Haviam de o adivinhar subterrâneo, toupeirando a réstia de vida que lhe faltava? Aguentariam descascar a terra até lhe encontrar?
Mas mesmo a esperança dele já não tinha vontade. Ser salvo, para quê? Beber areia, afundar-se num poço, despedir-se do mundo, tudo isso, não era nada comparado com o que vinha a seguir. Todos lhe negariam desculpas. Mesmo Armanda.
Quando saísse ele havia de escolher o longe, viver na distância, envelhecer sem nome nem história.

II — O AZUL TODO DAS CHEIAS

É o quê? Deus já desistiu dos homens? Não se importa da desgraça da terra?
A chuva está a chover até os poços começaram cuspir. Mesmo os sapos e as cobras já não têm casa. E o velho pergunta:
— Por que não descansas sofrimento? Depois de depois voltas mais outra vez...
Mas o destino da morte é ser sempre muita. E chove mais, vão-se molhando as tardes de Novembro, o pilão e a esteira a pingarem juntos no pátio.
O velho está sentado na sombra dos gemidos, só os seus suspiros sonham. O resto é resignação que conspira. Pode-se assim tanto morrer?
Mas ele aprendera a espalhar na sua alma o remédio do há-de vir. E consolava-se:
— A farinha há-de-me visitar, eu sei.
Lentamente, as chuvas iam pousando em todo o lado. Os rios agarravam-se com fora ao céu e já nenhum xicuembo (Xicuembo: feitiço) sabia desamarrar aquela água. Talvez que o sol, do quente que lhe sobrava, levasse com ele todo aquele azul. Mas não, o sol escorregava pelo zinco, sem beber quase nada. Passava com a cerimónia de um estranho.
— A boca que o sol tem já não chega — lamentava o velho.

II — O SALVAMENTO

A água crescia, as coisas e os bichos era só nadarem. Quando tudo em volta era só fumo da água apareceu um barco a motor que trazia dois pretos e um branco. Foi este que falou. As coisas que disse foi no respeito que nunca ouvira. Que palavras eram essas, afinal? Sempre foram asneiras a subirem-lhe no nome, a língua dos portugueses a disparar-lhe na família. Agora, essa língua não tinha maneira de patrão?
— Deve ser maneira de me tevar longe da machamba (Machamba: terreno de cultivo), afastar-me das minhas coisas.
Ou parece não. Os homens queriam que ele subisse para o barco, vinham salvá-lo.
O velho coçou a cabeça, arrastando a mão de trás para a frente.
— Ir onde, se depois da água é só água? Não estão ver que Deus nos quer peixando?
Os pretos falaram atrás, mesma coisa, as pessoas que não viessem no barco haviam de morrer, era com certeza. O velho num sorriso incrédulo:
— Isto é salvar-me? Salvar de quê?
E o velho lembrava-se do desastre nas minas do John, o fogo a espalhar desgraça nas galerias, a devorar vidas e corpos, sim, aquilo era morrer. Quando veio a brigada de salvamento ele sentou-se como uma criança perdida, a chorar. Mas os homens da brigada
não pararam para o socorrer, prosseguiram à procura de outras vidas mais valiosas. Um outro mineiro puxou-o pelos braços e gritou-lhe:
— Queres ser lenha, homem?
Lenha? A madeira lenha antes mesmo de arder. Ser lenha, compreendeu, é morrer assim só, sem ninguém para nos chorar. Só o seu número seria riscado na lista dos contratados. Mas o fumo entrou-lhe pela tristeza e os pulmões ordenaram que procurasse outro lugar. Um homem salva-se se é vontade da sua vida. Os outros são só o alimento dessa vontade.
E assim ficou de estar vivo até hoje.
Salvaram Jossias por duas vezes. Salvaram-no da morte, não o salvaram da vida. Para os outros, para os que o tinham ajudado, foram prémios, fotos no jornal. Ninguém falou que ele, Jossias Damião Jossene, continuava igual como antes, encostado à miséria.
— Salvar um alguém deve ser serviço completo — concluíra. — Não é levantar a pessoa e depois abandonar sem querer saber o depois. Não chega ficar vivo. Palavra da minha honra. Viver é mais.
E assim se decidira Jossias sobre o assunto da morte, não-morte.
Agora, neste caso, mudar para onde? A seguir é só água, o lugar onde saiu esse barco também é água. Mesmo isso já não é barco, é uma ilha com motor. Se é para morrer então prefiro esta morte que veio nadar até à minha casa. Esta terra aqui em baixo já tem as minhas mãos, a minha vida está enterrada neste chão, só falta agora o meu corpo, só.
A equipa de salvamento impacientava-se com a conversa do velho. O gajo o que é que quer, perguntava o branco. Os outros não traduziam, riam-se apenas. O velho maluco, vamos carregá-lo à força. Não temos tempo, há outras pessoas para recolher, o velho já perdeu o juízo.
— Deixem-me ficar, não posso morrer longe da minha vida.
Puxaram-no pelas axilas, sentaram-no no banco traseiro do barco e cobriram-no com uma manta.
— Não tens família?
Era o branco. Família? Talvez vocês, agora, são a minha família, aguentaram esta maçada de salvar-me. Apeteceu-lhe responder mas estava a tremer de mais.
— Perguntem-lhe na vossa língua, se a família não está por aqui, nas redondezas.
Perguntaram-lhe. Demorou a responder, queria usar bom português. Agarrou-se com fora à velha manta e pôs os olhos naquele mar em volta como se inquirisse pelas coisas que ele cobria.
— Dentro de água não está frio. Porquê não me deixam lá?
Os outros riram-se. Colocaram-lhe mais uma manta sobre os ombros e passaram-lhe uma chávena de chá bem quente. Pelos dedos magros, segurando trémulos a chávena de alumínio, subiu-lhe um estranho calor que não sabia traduzir. E veio-lhe a vontade de ficar para sempre quase naquele barco. Desejou que a viagem não tivesse fim como se o salvassem do tempo e não das águas, como se o tivessem liberto não da morte mas da sua terrível e solitária espera.
Com olhos de menino, fixou o escuro engolindo a terra, a tarde anoitecendo tudo.
A mentira da noite é matar o cansaço dos homens, pensou enquanto fechava os olhos.

— Mia Couto, no livro "Noites anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho,1987.
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