A história dos aparecidos - Mia Couto

© Megan Duncanson

A história dos aparecidos

É uma verdade: os mortos não devem aparecer, saltar a fronteira do mundo deles. Só vêm desorganizar a nossa tristeza. Já sabemos com certeza: o tal desapareceu. Consolamos as vivas, as lágrimas já deitámos, completas.
Ao contrário, há desses mortos que morreram e teimam em aparecer. Foi o que aconteceu naquela aldeia que as águas arrancaram da terra. As cheias levaram a aldeia, puxada pelas raízes. Nem ficou a cicatriz do lugar. Salvaram-se os muitos. Desapareceram Luís Fernando e Aníbal Mucavel. Morreram por dentro da água, pescados pelo rio furioso. A morte deles era uma certeza quando uma tarde apareceram mais outra vez.
Os vivos perguntaram muita coisa. Assustados, chamaram os milícias. Compareceu Raimundo que usava a arma como se fosse enxada. Estava a tremer e não encontrou outras palavras:
— Guia de marcha.
— Você está maluco, Raimundo. Baixa lá essa arma.
O milícia ganhou coragem quando ouviu a voz dos defuntos. Mandou que recuassem.
— Vão donde que vieram. Não adianta tentarem alguma coisa: serão rechaçados.
A conversa não se resolvia. Surgiu Estevão, responsável da vigilância. Luís e Aníbal foram autorizados a entrar para se explicarem às autoridades.
— Vocês já não são contados. Vao morar onde?
Os aparecidos estavam magoados com a maneira como eram recebidos.
— Fomos levados no rio, aguámos sem saber onde e agora vocês nos tratam como infiltrados?
— Espera, vamos falar com o chefe dos assuntos sociais. Ele é que tem a competência do vosso assunto.
Aníbal ainda tristeceu mais. Agora somos assunto? Uma pessoa não é um divórcio, um milando. Não é que tinham um problema: era a vida inteira que faltava resolver.
O responsável veio. Estava gordado, a barriga curiosa, espreitando na balalaica. Foram cumprimentados com o respeito devido aos defuntos. O responsável explicou as dificuldades e o peso deles, mortos de regresso imprevisto.
— Olha: mandaram os donativos. Veio a roupa das calamidades, chapas de zinco, muita coisa. Mas vocês não estão planificados.
O Aníbal ficou nervoso com as contas de que eram excluídos:
— Como não estamos? Vocês riscam a pessoa assim qualquer maneira?
— Mas vocês morreram, nem sei como que estão aqui.
— Morremos como? Não acredita que estamos vivos?
— Talvez, estou confuso. Mas este assunto de vivo não-vivo é melhor falarmos com os outros camaradas.
E foram para a sede. Explicaram a sua história mas desconseguiram de apresentar provas da sua verdade. Um homem arrastado como peixe só procura o ar, não se interessa de mais nada.
O responsável consultado concluiu, rápido:
— Não interessa se morreram completamente. Se estão vivos ainda pior. Era melhor ter aproveitado a água para morrerem-se.
O outro, o da balalaica em luta com os botões, acrescentou:
— Não podemos consultar as estruturas do distrito, dizer que já apareceram fantasmas. Vão responder que estamos envolvidos com o obscurantismo. Mes-mo podemos ser punidos.
— É verdade — confirmava outro. — Já assistimos um curso da política. Vocês são almas, não são a realidade materialista como eu e todos que estão conosco na nova aldeia.
O gordo sublinhava:
— Para abastecer a vocês temos pedir reforço das quotas. Como vamos justificar? Que temos almas para dar comida?
E assim ficaram sem mais conversa.
Luís e Aníbal saíram da sede, confusos e abatidos. Lá fora, uma multidão curiosa contemplava-os. Os dois aparecidos decidiram procurar Samuel, o professor.
Samuel recebeu-os em casa. Explicou-lhes a razão de eles estarem fora das contas do abastecimento.
— Os responsáveis daqui não são como das outras aldeias. Fazem candonga com os produtos. São distribuídos primeiro às famílias deles. Às vezes dizem que não chega enquanto na casa deles está cheio.
— Porquê não denunciam?
Samuel encolheu os ombros. Soprou no fogo para dar fora ao lume. Flores vermelhas das chamas espalharam o perfume da luz no pequeno quarto.
— Olha, vou dizer um segredo. Algum queixou-se às estruturas superiores. Dizem que esta semana há-de vir uma comissão saber a verdade das queixas. Vocês devem aproveitar essa comissão para expor o vosso caso.
Samuel ofereceu a casa e a comida, até que chegasse a comissão de inquérito.
Anbal sentou o pensamento nas traseiras da casa. Longamente contem-plou os próprios pés e murmurou baixinho como se falasse com eles:
— Meu Deus, como somos injustos com nosso corpo. De quem nos esque-cemos mais? É dos pés, coitados, que rastejam para nos suportar. São eles que carregam tristeza e felicidade. Mas como estão longe dos olhos, deixamos os pés sozinhos, como se não fossem nossos.
«Só por estarmos em cima, calcamos os nossos pés. Assim começa a injustiça neste mundo. Agora, neste caso, os pés sou eu e Luís, desimportados, caídos na poeira do rio.
Luís chegou-se com menos luz que uma sombra e pediu-lhe explicação daquele murmúrio.
Anbal contou-lhe a descoberta dos pés.
— Era melhor se pensasse uma maneira para mostrar essa gente que, afinal das contas, somos alguns.
— Sabe o quê? Antigamente o mato, tão vazio de gente, me fazia medo. Pensava só podia viver nas pessoas, vizinho de gente. Agora, penso o contrário. Já quero voltar no lugar dos bichos. Tenho saudades de ser ninguém.
— Cala-se, você. Essa conversa já parece dos espíritos.
Calaram-se os dois, receosos da sua condição trémula. Muitas vezes mexiam nas coisas, raspavam no chão como se quisessem confirmar a matéria do seu corpo. Luís perguntou:
— Ser que verdade? Não ser que somos mesmo falecidos? Pode ser eles têm razão. Ou talvez estamos nascer outra vez.
— Pode ser, meu irmão. Pode ser tudo isso. Mas o que não está certo serem acusados, serem esquecidos, riscados, indeferidos.
Era a voz de Samuel, o professor. Aproximou-se trazendo na mão algumas mangas que distribuiu pelos dois candidatos à existência. Cascaram os frutos, enquanto o professor continuava:
— Não é justo esquecerem que vocs, vivos ou mortos, fazem parte da nossa aldeia. Afinal, quando foi preciso defender a aldeia dos bandidos, vocês não pegaram as armas?
— E verdade. Até eu sofro desta cicatriz da bala do inimigo. Aqui.
Aníbal erguia-se para apontar a prova do sofrimento, um risco fundo que a morte escrevera nas costas.
— Todos sabem que vocs merecem ser contados. É medo, só, que lhes faz calar, aceitar mentiras.
De pé, como que estava, Aníbal espremeu a raiva nos seus punhos. A manga gotejou e o sumo doce-triste caiu.
— Você, Samuel, sabe as coisas da vida. Não acha que é melhor sairmos, escolhermos outro lugar?
— Não, Aníbal. É melhor ficar. Hão-de conseguir, tenho a certeza. E depois, um homem que abandona um sítio porque foi derrotado, esse homem já não vive. Não tem mais lugar para começar.
— Afinal, Samuel? Você também não acredita que somos vivos?
— Cala-te, Luís. Deixa o Samuel nos conselhar.
— Esses que vos complicam hão-de cair. São eles que não pertencem a nós, não são vocês. Fiquem, meus amigos. Ajudam-nos no nosso problema. Nós também não somos considerados: somos vivos mas é como se tivssemos menos vida, como se fôssemos metades. Isso não queremos.
Luís levantou-se e espreitou no escuro. Andou em círculo e regressou ao centro, aproximando-se do professor:
— Samuel, não tens medo?
— Medo? Mas, essa gente tem que cair. Não foi a razão da luta acabar com esta porcaria de gente?
— Não estou a falar disso — respondeu Luís. — Não tens medo que nos apanhem aqui contigo?
— Com vocês? Mas, afinal, vocês existem? Não posso estar com quem não existe.
Riram-se. Levantaram-se e separaram-se pelas duas portas da casa. Anbal, antes de entrar:
— Eh, Samuel! A luta continua!
A comissão chegou três dias depois. Era acompanhada por um jornalista que se interessou pela história de Luís e Aníbal. Prometeu-lhe mexer no proble-ma. Se as coisas não se resolvessem, ele publicaria no jornal e os responsáveis da aldeia seriam desmascarados.
A comissão trabalhou durante dois dias. Convocaram então uma assem-bleia geral dos aldeões. O recinto ficou cheio vieram todos saber das novidades. O chefe da comissão anunciou as solenes conclusões:
— Estudámos com muita atenção o problema dos dois elementos que deram apareci-mento na aldeia. Chegámos à seguinte conclusão oficial: os camaradas Luís Fernando e Aníbal Mucavel devem ser considerados populações existentes.
Aplausos. A assembleia parecia mais aliviada que contente. O orador prosseguiu:
— Mas os dois aparecidos bom serem avisados que não devem repetir essa saída da aldeia ou da vida ou seja lá de onde. Aplicamos a política de clemência, mas não iremos permitir a próxima vez.
A assembleia aplaudiu agora com convicção.
Ao outro dia, Luís Fernando e Aníbal Mucavel começaram a tratar dos documentos dos vivos.


— Mia Couto, no livro "Noites anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho,1987.
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