Divertimento - Carlos Drummond de Andrade

Caricatura de Carlos Drummond de Andrade (por William, Baptistão e Neves)

Divertimento

A Carlos Manuel (quatro e meio) e Luís Mauricio (dois anos):[1]
É com vocês tomarem o primeiro avião e virem direto para esta rua já conhecida dos dois. Se deixarem as férias para dezembro, a situação não será a mesma. No momento, posso oferecer-lhes uma atração ímpar: a longa e profunda escavação no eixo da rua, para colocação de novo encanamento.
Vocês já perderam a fase da abertura do buraco, que é bem boa. Gente de ouvido melindroso não aprecia, mas ver o asfalto rachando sob o impacto da perfuratriz é uma beleza que não tive quando menino. O ar treme, as mãos do operador tremem no comando; se facilita, o pé dele some na brincadeira; mas não acontece nada.
Bem, enquanto a cova se abria, canos de largo diâmetro foram dispostos de cada lado da rua, e aí está outra diversão sadia e popular, de que vocês estão-se privando. Sabem o que é tubo largado na via pública, meninos apartamentizados? Acontece cada cinco anos, na melhor hipótese. Os garotos vão chegando, apostando corrida por cima, ou se introduzindo no bojo escuro. Você que é mais taludinho, Carlos Manuel, já não caberia sentado no tal tubo, mas lá dentro se pode imaginar uma cabana, um subterrâneo; mede uns quatro metros, é uma galeria decente. O brinquedo similar dos playgrounds, todo pintado e catita, não tem esse rude encanto. Com um tubo, organizam-se excelentes caçadas no Araguaia, perseguições a bandidos e outras emoções fortes; quando não, serve simplesmente para a gente se esconder e sujar bem a roupa, o que, nessa idade, também serve.
Mas o gostoso mesmo é a longa vala no centro, aliás aberta com a colaboração da gurizada, que funciona das onze às doze (hora de almoço dos operários) e das dezesseis em diante. Há meninos que tapam em vez de abrir, outros abrem e tapam, outros destapam e outros contemplam, deslumbrados. Brinquedo de terra na rua? Nunca ouviram falar disso. Não é bem de terra, mas de areia, porque, como vocês sabem, esta rua é quase marítima; porém o prazer é igual; ninguém se farta de admirar a rua devolvida a usos infantis, livre de automóvel, revolvida e alegre. São pulos, empurrões, quedas, pás, gritos, engenharias, que sei eu? Os meninos somem lá dentro, voltam sujos e felizes.
A feira, meus caros, continua a funcionar uma vez por semana, no meio da bagunça. Só que as barracas se armam na calçada, rente às casas, e como a nossa é baixa, o barraqueiro nos joga as mangas e bananas do lado de fora, e nós de dentro lhe jogamos o dinheiro, o que aumenta o prazer da rua desmanchada. É isso. Desmancharam a rua, e as crianças, por instinto, viram que era para elas.
Não demorem, meus netinhos, porque na quadra anterior já botaram os canos e se tapou o buraco. A turma do asfalto aproxima-se. Teremos essa felicidade pública até dezembro? O pintor Reis Júnior passou por aqui e perguntou: “Mas onde estão os meninos desta casa? Telegrafe a eles que venham. O buraco está fechando, mas eu vou acompanhá-lo pelas ruas próximas, e direi onde é que eles podem encontrá-lo”.
Eu, que sempre escrevi contra buracos, rendo-me a este. Não há melhor divertimento para crianças. Nem para adultos, se não fôssemos uns bocós envergonhados. Venham, malandros!


— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[1] - Carlos Manuel e Luís Mauricio Graña Drummond, ambos netos de Drummond, que então viviam com os pais, na Argen.
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Biografia, entrevistas e poemas do poeta Drummond:

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