Duelo - João Guimarães Rosa

Duelo
© Raimundo Cela
Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo, era seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas, e chorava sem fazer caretas; palavra por palavra: papudo, vagabundo, vingativo e mau. Mas, no começo desta estaria, ele estava com a razão.
Aliás, os capiaus afirmam isto assim peremptório, mas bem que no caso havia lugar para atenuantes. Impossível negar a existência do papo: mas papo pequeno, discreto, bilobado e pouco móvel — para cima, para baixo, para os lados — e não o escandaloso “papo de mola, quando anda pede esmola”... Além do mais, ninguém nasce papudo nem arranja papo por gosto: ele resulta das tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há, também cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais ou menos, de tatus. E, tão modesto papúsculo, incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava o seu proprietário: Turíbio Todo era até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo elegante.
Não tinha, porém, confiança nesses dotes, e daí ser bastante misantropo, e dali ter querido ser seleiro, para poder trabalhar em casa e ser menos visto. Ora, com a estrada-de-ferro, e, mais tarde, o advento das duas estradas de automóvel, rarearam as encomendas de arreios e cangalhas, e Turíbio Todo caiu por força na vadiação.
Agora, quanto às vibrissas e ao choro sem visagens, podia ser que indicassem gosto punitivo e maldade, mas com regra, o quanto necessário, não em excesso.
E, ainda assim, saibamos todos, os capiaus gostam muito de relações de efeito e causa, leviana e dogmaticamente inferidas:
Manuel Timborna, por exemplo, há três ou quatro anos vive discutindo com um canoeiro do Rio das Velhas, que afirma que o jacaré-do-papo-amarelo tem o pescoço cor de enxofre por ser mais bravo do que os jacarés outros, ao que contrapõe Timborna que ele só é mais feroz porque tem a base do queixo pintada de limão maduro e açafrão. E é até um trabalho enorme, para - gente sensata, poder dar razão aos dois, quando estão juntos.
Assim, pois: de qualquer maneira, nesta história, pelo menos no começo— e o começo é tudo — Turíbio Todo estava com a razão.
Tinha sido para ele um dia de nhaca: saíra cedo para pescar, e faltara-lhe à beira do córrego o fumo-de-rolo, tendo, em coice e queda, de sofrer com os mosquitos; dera uma topada num toco, danificando os artelhos do pé direito; perdera o anzol grande, engastalhado na coivara; e, voltando para casa, vinha desconsolado, trazendo apenas dois timburés no cambão. Claro que tudo isso, sobrevindo assim em série, estava a exigir desgraça maior, que não faltou.
Mas, por essa altura, Turíbio Todo teria direito de queixar-se tão-só da sua falta de saber-viver; porque avisara à mulher que não viria dormir em casa, tencionando chegar até ao pesqueiro das Quatorze-Cruzes e pernoitar em casa do primo Lucrécio, no Dêcámão.
Mudara de ideia, sem contra-aviso à esposa; bem feito!: veio encontrá-la em pleno (com perdão da palavra, mas é verídica a narrativa) em pleno adultério, no mais doce, dado e descuidoso, dos idílios fraudulentos.
Felizmente que os culpados não o pressentiram. Turíbio Todo costumava chegar com um mínimo de turbulência; ouviu vozes e espiou por uma fisga da porta; a luz da lamparina, lá dentro, o ajudando, viu. Mas não fez nada. E não fez, porque o outro era o Cassiano Gomes, ex-anspeçada do 1° pelotão da 2 companhia do 5° Batalhão de Infantaria da Força Pública, onde as gentes aprendiam a manejar, por música, o ZB tchecoslovaco e até as metralhadoras pesadas Hotchkiss; e era, portanto, muito homem para lhe acertar um balaço na testa, mesmo estando as sim em sumaríssima indumentária e fosse a distância para duzentos metros, com o alvo mal iluminado e em movimento.
Turíbio Todo não ignorava isso, nem que o Cassiano Gomes era inseparável da parabelium, nem que ele, Turíbio, estava, no momento, apenas com a honra ultrajada e uma faquinha de pi car fumo e tirar bicho-de-pé.
Todavia, como o bom, o legítimo capiau, quanto maior é a raiva tanto melhor e com mais calma raciocina, Turíbio Todo dali se afastou mais macio ainda do que tinha chegado, e foi cozinhar o seu ódio branco em panela de água fria.
E fez bem, porque então lhe aconteceu o que em tais circunstâncias acontece às criaturas humanas, a 190 de latitude S. e a 44º de longitude O.: meia dúzia de passos e todo o mau ‘
humor se deitava num estado de alívio, mesmo de satisfação.
Respirava fundo e sua cabeça trabalhava com gosto, compondo urdidos planos de vingança.
E pois, no outro dia, voltou para casa, foi gentilíssimo com a mulher, mandou pôr ferraduras novas no cavalo, limpou as armas, proveu de coisas a capanga, falou vagamente numa caçada de pacas, riu muito, se mexeu muito, e foi dormir bem mais cedo do que de costume. E isso foi na quarta-feira. Quinta-feira pela manhã...
...Altos são os montes da Transmantiqueira, belos os seus rios, calmos os seus vales; e boa é a sua gente... Mas, homens são os homens; e a paciência serve para vãos andares, em meados de maio ou no final de agosto. Garruchas há que sozinhas disparam. E é muito fácil arranjar-se uma cruz para as sepulturas de beira de estrada, porque a bananeira-do-campo tem os galhos horizontais, em ângulos retos com o tronco, simétricos, se continuando dos lados, e é só ir cortando, todos, com exclusão de dois. E... quê? O tatu-peba não desenterra os mor tos? Claro que não. Quem esvazia as covas é o tatu-rabo-mole. O outro, para que iria ele precisar disso, se já vem do fundo do chão, em galerias sinuosas de bom subterrâneo? Come tudo lá mesmo, e vai arrastando ossadas para longe, enquanto prolonga seu caminho torto, de cuidoso sapador.
Bem, quinta-feira de-manhã, Turíbio Todo teve por termina dos os preparativos, e foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes.
Viu-o à janela, dando as costas para a rua. Turíbio não era mau atirador; baleou o outro bem na nuca. E correu em casa, onde o cavalo o esperava na estaca, arreado, almoçado e descansadão,
Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silivana tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), porque era um cavalheiro, incapaz da covardia de maltratar uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra mais exigente.
Agora tinha de cair no mundo e passar algum tempo longe, e tudo estaria muito bem, consequente e certo, limpamente realizado, igualzinho a outros casos locais.
Mas... Houve um pequeno engano, um contratempo de última hora, que veio pôr dois bons sujeitos, pacatíssimos e pacíficos, num jogo dos demônios, numa comprida complicação: Turíbio Todo, iludido por uma grande parecença e alvejando um adversário por detrás, eliminara não o Cassiano Gomes, mas sim o Levindo Gomes, irmão daquele, o qual não era metralhador, nem ex-militar e nem nada, e que, por sinal, detestava mexida com mulher dos outros, TuríbioTodo soube do erro, ao subir no estribo. — Ui!... Galope bravo, em vez de andadura!... — pensou. E enterrou as esporas e partiu, jogando o cascalho para os lados e desmanchando poeira no chão.
Cassiano Gomes acompanhou o corpo do irmão ao cemitério, derramou o primeiro punhado de terra, e recebeu, com muita compostura, entristecido e grato, as condolências competentes. Depois voltou em casa, fechou muito bem as janelas e portas — felizmente ele era solteiro — e saiu, com a capa verde reiúna, a winchester, a parabellum e outros petrechos, para procurar o Exaltino-de-trás-da que tinha animais de sela para vender.
Comprou a besta douradilha; mas, antes, examinou bem, nos dentes, a idade; deu um repasse, criticou o andar e pediu uma diferença no preço. Encerrado o negócio, com os arreios e tudo, Cassiano mandou que dessem milho e sal à mula; escovaram-na, lavaram-na e ferraram-na de novo.
Já ele pronto, quando estava amarrando a capa nas garupeiras, ainda ouviu o que o Exaltino-de-trás-da-Igreja falou, baixinho, para o Clodino Preto: — Está morto, O Turíbio Todo está morto e enterrado!... Esta foi a última trapalhada que o papudo arranjou...
Cassiano pensou, fumou, imaginou, trotou, cismou, e, já a duas léguas do arraial, na grande estrada do norte, os seus cálculos acharam conclusão: Turíbio Todo tinha uns parentes na Piedade do Bagre, ou ali por menos longe... Para lá batera, direitinho, ainda assustado por conta do malfeito. Não podia ter tomado outro rumo, e, de seguro, dando o mais que pudesse, teria vindo a galope. Quando ele chegasse na Piedade — para diante não havia terras aonde um cristão pensasse ir— , descansado, junto de gente sua, tornaria a ter raiva e tratava de voltar nos passos.
E estava muito certo disso tudo:
— Ele vai como veado acochado, mas volta como canguçu... No meio do caminho a gente topa, e quem puder mais é que vai ter razão...
Não precisava, portanto, de pressa, e podia ir na marcha estradeira, sem estropiar a bestinha. E, nem que só para não deixar que se esgotassem as suas reservas de ódio, punha ele a ideia em assuntos amenos, e se relaxava para caçar o jaó nas ca poeiras e, nos campos, a codorna e a pomba torcaz.
Contudo, sabendo que as notícias sempre chegam primeiro do que a gente de bem, achava razoável dar às coisas uma de-mão: era só cruzar com um troço de tropeiros tangendo a burrada, ou alcançar um capinador que ia para a roça, de enxada no ombro, e Cassiano parava, procurando conversa e falando no inimigo com os piores insultos:
— Você conhece o Turíbio Todo, o seleiro, aquele meio papudo?... Pois é um... (Aqui, supostas condições de bastardia e desairosas referências à genitora.) Mas, bico trancado, quanto aos planos: nada de ameaças, injúrias só.
E Cassiano Gomes tinha acertado, em parte. Turíbio Todo viera mesmo para Piedade do Bagre, justo como um catinguei ro à frente do latido de dez trelas e mais a buzina do perreiro; e bastara-lhe um dia de repouso, para compreender que estava num fundo-de-saco, pois que aquele lugarejo era a boca do sertão.
Mas não voltou como onça na ânsia da morte: baldeou do matungo ajumentado e estrompado, para um ruço-picaço quatrolho e quatralvo, e fez que vinha e não veio, e fez como o raposão. Obliquou a rota para nor-nordeste, demandando as alturas do Morro do Guará ou do Morro da Garça, e aí houve que foi onde Cassiano tinha descalculado, mancando a traça e falseando a mão.
— Tem tempo... — disse. E continuou a batida, confiado tão só na inspiração do momento, porquanto o baralho fora rebaralhado e agora tinham ambos outros naipes a jogar.
Porém, posto que a situação se complicara, o essencial era zanzar na sombra, para apanhar o outro desprevenido, de surpresa; e, para isso, amoitar-se, pois: — Não vê! Quem fica no claro é enxergado mais primeiro, e leva o tiro que quem está no escuro é quem dá!...
Fugindo, Turíbio Todo levava aparente desvantagem. Mas Cassiano fiava muito pouco nessa correria, porque a qualquer momento a caça podia voltar-se, enraivada; e vem disso que às vezes dá lucro ser caça, e quem disser o contrário não está com a razão.
E assim, pensando dessa louvável maneira, ele passou a viajar de preferência à noite, cortando mato a dentro, evitando a estrada-mestra, fazendo grandes rodeios e dormindo de dia, em impossíveis lugares. Era a conta descuidar-se ou afoitar-se um tiquinho, deixar de esticar voltas e de pegar atalhos, dormir com os dois olhos fechados ou fazer muito anunciados itinerário e pessoa, para, de hora para outra — não há como um papudo para se sair bem de uma tocaia, todos dizem, — Cassiano Gomes ser acordado do sono por uma bala ou facada, e, isso mesmo, caso o outro houvesse por bem deixá-lo despertar.
Agora, quando encontrava qualquer mandioqueiro ou qual quer um andejo, tinha lérias e embustes para indagar, sem dar a saber quem era; sim, que passara o tempo de semear notícias, e era abrir os ouvidos e saber do papudo, que precisava de acuar para poder atirar.
E, desse jeito, visto que Turíbio Todo talvez fosse ainda mais ladino e arisco, durante dois meses as informações foram vaqueiras e vagas, e nunca se soube bem por onde então eles andaram ou por quais lugares foi que deixaram de andar.
Mas, nesse depois, deu que um dia Cassiano, surgindo nas Traíras, escutou conversa de que o outro estava na Vista Alegre, aonde viera ter, aquerenciado, com saudades da mulher.
Cassiano Gomes tirou suas deduções e tocou riba-rio, sempre beirando o Guaicuí, que só vadeou no lugar bonito — com frangos-d’água chocando ovos no fundo dos quintais, com uma lagoa no centro do arraial — chamado Jequitibá; isso enquanto Turíbio Todo, um pouco além norte, fazia uma entrada triunfal em Santo Antônio da Canoa, onde ainda ousou assistir, muito ancho, às festas do Rosário, com teatrinho e leilão.
Dançando de raiva, Cassiano fez meia-volta e destorceu caminho, varejando cerradões, batendo trilhos de gado, abrindo o aramado das cercas dos pastos, para cair, sem aviso, no meio dos povoados tranquilos dos grotões. Mas eram péssimos os voluntários do serviço de informes, e, perto de Saco dos-Cochos, eles cruzaram, passando a menos de quilômetro um do outro, armados em guerra e esganados por vingança.
E Cassiano Gomes, por ter apenas vinte e oito anos e, pois, ser estrategista mais fino, vinha pula-pula, ora em recuos estúrdios, ora em bizarras demoras de espera, sempre bordando espirais em torno do eixo da estrada-mãe. Mas Turíbio Todo, sendo mais velho, tinha por força de ser melhor tático, e vinha vai-não-vai, em marcha quebrada, como um vôo de borboleta, ou melhor de falena, porque ele também se fizera noctâmbulo; e levava além disso estupenda vantagem, traquejado no terreno, que lhe era palma das mãos.
E assim continuaram, traçando por todos os lados linhas apressadas, num raio de dez léguas, na mesopotâmia que vai do vale do Rio das Velhas — lento, vago, mudável, saudoso, sempre nascente, ora estreito, ora largo, de água vermelha, com bancos de areia, com ilhas frondosas de mato, rio quase humano, — até ao Paraopeba — amplo, harmônico, impassível, seivoso, sem barrancas, sem rebordos, com praias luminosas de malacacheta e águas profundas que nunca dão vau.
E nenhum deles era capaz de meter se em passagens de cavas, nem de arranchar duas noites seguidas no mesmo pouso, nem de atravessar uma baixada aberta à vista dos morros; e, se parassem e pensassem no começo da história, talvez cada um desse muito do seu dinheiro, a fim de escapar dessa engronga, mas coisa isso que não era crível nem possível mais.
Quando Cassiano dobrava a serra Sela do Ginete, transmontando para o Cuba, se encontrou com um vira-mundo pedidor-de-esmola, com pernas enormes de elefantíase, carregando, por promessa, a pesada imagem, já inidentificável, de um santo; e o esdrúxulo estradeiro forneceu-lhe uma pista: o papudo também descambara, acompanhando o caminho do sol.
Foi atrás. Mas, chegando ao São Sebastião, chorou de ódio: topou com um ladrão de cavalos, que subia com a última tropilha, porque já tinha ganho muito dinheiro e voltava para sua terra para tornar a ser honesto, e que disse que Turíbio Todo andava longe, outra vez para lá do Rio das Velhas, no Marosso ou no Baldim.
Então Cassiano trocou pela segunda vez de montada, comprando um alazão de crineira negrusca, porque estava pisado, em seis pontos do lombo, e com fortes assaduras nos sovacos, o cavalo baio-calçado que berganhara pela mula douradilha, a qual, por sua vez, havia aguado dos cascos dos pés e das mãos.
Também Turíbio Todo já usava a esse tempo a quarta ou quin ta cavalgadura, e aí foi que ele teve a audácia de passar no arraial, porque estava com saudades da mulher, Dona Silivana — aquela mesma que tinha belos olhos grandes, de cabra tonta — , com quem ficou uma noite, e a quem, na hora da despedida, confiou, sob segredo, o seu estratagema último.
A mulher aconselhara:
— Por que é que você não vai para bem longe, esperar que a raiva do homem recolha?...
(Dona Silivana tinha sábios desígnios na cabecinha...) — Que-o-quê!... Você jura não contar p’ra ninguém uma coisa?... Por esta luz!... Pois será que você já não tem mais confiança nem em mim?!
— Pois, olha: eu, afora o papo, tenho muita saúde, graças a Deus... Mas, o tal... Correndo assim por essas brenhas, quero ver! Ele barganha de cavalo, troca, troca, que nem cigano, mas não pode bater baldroca com o coração, lá dele, que não regula direito! É só esperar um pouco e sacudir vermelho nas ventas do touro... Eh, boi bravo!... Estou sem cachorro, mas estou caçando de espera, e é espera p’ra galheiro!
E, com essas, Dona Silivana começou a sentir-se mal, com um frio em si, por dentro, porque o Cassiano Gomes não dera baixa da Polícia à toa, e sim excluído pela junta médica; e, apesar do seu garboso aspecto, não lhe prestava para muito o coração.
Turíbio Todo tirou as ferraduras da montaria, e comprou outras, que fez que p no cavalo, mas não pôs toda essa manobra para que o outro, dando-se o caso, por mal informado, se desnorteasse de rastro — ; montou e bateu para as Lages, onde um fazendeiro lhe exibiu, já nédio e refeito nas marchas forçadas, o baio-calçado, segundo animal usado por Cassiano.
Aí, não resistiu: comprou, pagando sem hesitação preço e meio; e tocou para as Tabocas, ovante, se desmazelando de rir:
— Cavalinho bom, cavalinho de defunto... Estou recebendo é herança em adiantado, mas com o mais que será de bom!...
E, virando-se para trás, insultou a visão invisível do inimigo: — “Pega à unha, joão-da-cunha!..
Cassiano cedo conheceu a intenção do seleiro, que Dona Silivana lhe transmitiu, por quanta boca prestativa faz, na roça, as vezes das rádio-comunicações.
Numa várzea bonita, entre Maquiné e Riacho Fundo, ponto fora de rota de povinho a cavalo, um vaqueiro que campeava bois tresmalhados foi mesmo o primeiro que anunciou: — .. . e o Turíbio quer é que o senhor morra do coração, seu Cassiano. Não vale a pena dar esse gosto a ele, não!
Cassiano Gomes fez carranca, e pensou; mas respondeu:
— Mamparra! Se ele quisesse isso, não era bobo de sair contando... Ele está mas é com esperança que eu estaque, só por medo de doença...
E sorriu um sorriso sem graça, de ira congelada, descansando num dos estribos, corpo torto e rédea bamba, perquirindo a linha longe dos morros, a ver se ia chover.
Mas, como Turíbio Todo falara a verdade, para o outro pensar que fosse trapaça, assim se deu que Cassiano Gomes tinha errado, mais uma vez.
E continuou o longo duelo, e com isso já durava cinco ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem desfecho.
Até que, pois, variaram de lance, partindo, com pouca distância — Turíbio Todo à frente -
outra vez do das Velhas, em direção ao oeste. E isso talvez sem razão nenhuma, ou porque o seleiro julgasse próprio irritar mais o outro, ou fosse porque aquele, que tinha deixado a cachaça a bem da ideia lúcida, vol tara, por esse tempo, de novo a beber.
E quando Turíbio Todo riscou um arco, do Aruá ao Cedro, Cassiano Gomes vinha precisamente em reta acelerada, e tocou-lhe, amanhã e ontem, a trajetória, em tangente atrasada e em secante adiantada demais. Depois, viajaram quase de conserva, perfeitamente paralelos, e ambos sentindo que estava chegando a hora da missa-cantada, e o fim de tanta caceteação.
Até que, bruscamente, as duas paralelas convergiram, no porto da balsa, onde um barqueiro transportava animais e pessoas a quatrocentos réis por cabeça, e onde rolava, sujo e sem sombras, mugindo no descampado,o Paraopeba — o rio amarelo de água chata.
Cassiano, tendo colhido notícias bem pagas, e agora sabendo que vinha nos cascos de Turíbio, chegou de-tardinha à borda do rio.
— E se o cachorro do canalha tivesse atravessado?
Foi direito ao rancho, onde havia somente, encostados, abarracados em linha, duas dúzias de couros de boi. Pistola em punho, foi levantando um por um. De repente, voltou-se, violento, pronto para atirar.
Mas era só um menino magrelo, chupando um toro de cana comprido, como um bambu.
— Você viu passar por aqui um homem branco, assim meio papudo, num cavalo café-com-leite, preto das quatro mãos? Sabe se ele foi p’ra a outra banda do rio?
— Nhor não. Esse-um eu não vi não.
— Qu’é-de o barqueiro daqui, pois então?
— É meu pai, sim senhor... Foi buscar rapadura na Coanxa... Amanhã cedinho ele ‘tá’qui ‘tra vez...
— Pois vai-t’embora e fica espiando, de beirada... Mas não conta a ninguém que me viu, hein!?... Se o tal homem aparecer, você vem ligeiro me avisar, que eu te dou dinheiro, o que você quiser...
E Cassiano desarreou o alazão e foi deixá-lo, manietado com peia larga, atrás da capoeira de assa-peixe, onde havia grama da miúda e umas touceiras de capim-chatinho. Depois se escondeu debaixo de um dos couros, porque Turíbio Todo tinha que vir por ali, talvez para transpor o rio, e fora uma grande sorte ter chegado primeirão.
Quando escureceu de todo, ele saiu da toca, se esgueirando, de arma lesta. Havia toadas de grilos, houve risadas de corujas, e, dos fundos da noite, muito fresca, um cachorro latiu.
E Cassiano deu com os olhos numa fogueira, a menos de trezentos metros, a jusante.
Deitou-se no chão, como nos tempos da vida de soldado -- esperando que a silhueta do papudo se debuxasse à luz das chamas, para dar ao gatilho, então. Mas foi do outro lado, por detrás dele, que pipoquearam tiros, das moitas de taquari; e o cicio das balas renteou-lhe a cabeça.
— Olha a inácia! — ralhou de si Cassiano, apagando o cigarro, que o que dera alvo tinha sido a brasinha vermelha. Aí, porém, da banda da estrada, onde a copa do açoita-cavalos negrejava como uma anta encolhida, fizeram fogo também.
Ei, e Cassiano rastejou, recuando, e, dando três vezes o lanço, transpôs as abertas entre a criciúma e a guaxima, entre a guaxima e o rancho, e entre o rancho e o gordo coqueiro catolê. Acocorou-se, coberto pela palmeira, e espiou, buscando um sinal claro ou qualquer vulto movente.
Mas, que era aquilo, então? O atirador de rio-acima, dos taquaris, e o outro, o da estrada, do açoita-cavalos, trocavam ago ra disparos? Cada um, ali, estaria brigando, de uma vez, contra dois?!
De assim a pouco, entretanto, cessou a fuzilada.
Mas Cassiano não cochilou nem um momento, durante a noite. Mutuns cantaram, certos, às horas em que cantam os galos. No mais, distante, o mato dormia, num quiriri sem alar mas, O rio era um longo tom, lamentoso. Caía, das estrelas,1 um frio de se sentar em costas de homem. E crescia, com as horas, o cheiro das folhagens molhadas. Depois, com os passarinhos, chegou a madrugada. A barra do dia vinha quebrando, E um sujeito, alto e espadaúdo, apareceu, em pé, diante do bivaque. Vinha armado de foice, e roncou: — Qu’é-de o seu companheiro, o do papo?
— Estou sozinho, como o senhor vê...
— Não vejo!
E o grandalhão se postara contra um dos moirões do rancho,. prevenindo-se contra uma possível agressão pela retaguarda; Retraiu o braço com a foice, e insistiu: — Quanto foi que o Elias Ruivo pagou a vocês dois, para vocês acabarem comigo? Há?!
— Não encosta, amigo, que essa distância é boa!
Com os olhos nos olhos do homem, Cassiano foi encolhendo a barriga; e o corpo lhe oscilava um nadinha, levíssimo, se estivesse suspenso de um fio, balançando á bafagem do vento. Então, lá de diante, pôde vir o barulhinho, o tênue e constante rangido dos couros de boi.
E os dois não se desfitavam, um e outro vigiando o relance do bote, para o selvagem corpo-a-corpo. Mas, pronto, Cassiano compreendeu o equívoco. E gritou: — Deixa de conversa errada, homem! O senhor está sonhando? Não tenho parte nessa sua história, não conheço esse tal de Elias Ruivo, nem tenho nada com o senhor!... Eu ando mesmo é atrás daquele papudo, por via de um negócio nosso, e o senhor está empalhando...
O gigante, sem desmanchar a atitude de pré-assalto, trouxe uma sobrancelha para perto da outra, para pensar, e parou de brandir a foice.
— Não sei... Não sei... E se não for?...
Ao que Cassiano viu que tinha de convencê-lo depressa, ou senão seria o atracamento bestial, dando ensejo a Turíbio, que devia de estar rondando o rancho, de chegar sem suor, como último convidado. Falou, pois, com assomo: — Eu sou o militar Cassiano Gomes, da Vista Alegre, criatura!
— Hum-hum! Hã-hã!... — fez o homem, derreando a mandíbula e abalando a cabeça em sim que sim. E no seu entendimento tudo devia ter-se aclarado: . . ouvira notícia daquela briga, pois não... Até costumava perguntar sempre aos viajantes que vinham para o Oeste, se o “truco, fecha!” já tinha havido... Que burreza! tomara os dois por capangas do Elias Ruivo, do o Sebastião, inimigo seu... Mas eles tinham aparecido assim com tanta visagem, com tanto escondido... E o Elias Ruivo vivia prosando que ia benzer em sangue a água do rio...
E, no há-de que não há, se chegou para Cassiano, traindo nos olhos curiosidade, com sofreguidão. Era o passador da balsa. Acocorou-se-lhe diante, pachorro, depondo a foice e extraindo dos bolsos o tolete de fumo, os petrechos de pitar. E Cassiano teve de historiar tudo, desde o começo, enquanto o barqueiro aprovava com a cabeça e mais perguntava, baforando gloriosas fumaceiras.
Mas Cassiano tinha pressa de caçar o assassino, que não devia c de estar longe. E o balseador, sabendo ter de guardar neutralidade, deixou-o rondar por ali, inutilmente, até à hora do almoço. Turíbio Todo não apareceu.
— Decerto ele teve medo, por conta dos tiros... Gastei muito do meu chumbo...
— E... Deste jeito eu não arranjo nada, e fico me acabando à toa... É melhor eu voltar p’ra casa e deixar passar uns tem pos, até que ele sossegue e pegue a relaxar...
E Cassiano Gomes estava enganando a si próprio, pois na realidade se sentia de repente cansado, porque um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício cardiaco começara a dar sinal de si.
Chico Barqueiro o viu montar e alongar caminho, num chouto que o alazão batia com moleza, de quadrúpede estradeiro caído havia muito na desilusão.
E Chico Barqueiro não tinha dado opinião nenhuma, e foi pescar. Mas, mal acabara de poitar a canoa e jogava o anzol n’água, no meio do rio, quando, da margem, alguém gritou e gesticulou. Não havia dúvida — era o papudo chegando.
Chico Barqueiro colheu a linha, deu boas varejoadas, e proejou, vindo-vindo, para a beira de cá.
Turíbio Todo, meiamente ansioso, quis começar com explicações, sobre os tiros e tudo.
Mas o Chico, olhando-o com mau modo, acenou-lhe que subisse para a balsa, e foi puxar cá para dentro o cavalo baio, que resistia de pés juntos, querendo empinar. Depois o balseiro desprendeu a corrente, deu um arranco de zinga, e a balsa — um ajoujo de quatro canoas de proas chanfradas, sobreassoalhado e guarnecido de um gradil sem cancela — balanceou e avançou.
Turíbio Todo se acomodara, e ficou vigiando o outro com o rabo-do-olho, bem desconfiadíssimo. E nenhum falou. Os feixes de água golpeavam o flanco da balsa, em jacto mole; a ar gola rangia, em cima, no arame; e a correnteza marulhava, a montante.
Os dois homens e o cavalo estiveram quietos. Mas, justo no meio do rio, o barqueiro, carrancudo, começou a encarar, a encarar. Turíbio, de de-lado, abaixava a vista. E então o outro não se pôde por mais tempo:
— O senhor é o sujeito meio ordinário, sem sustância, e sem caráter! Se fosse homem, voltava...
— Eu?... Sou de paz e sou pai-de-família, meu senhor!... O senhor está enganado...
— Eu sei... Vai fugindo, se escondendo... Fico até com nojo de ver tanta falta de pouca vergonha emporcalhando a minha balsa!
E cuspiu n’água, escarrando com estrondo.
Turíbio Todo se encrespou torto, uniu os dentes; e olhos que coriscou raiva. O barqueiro, porém, empunhava o varejão. Mesmo em terra, seria sem esmo ter de enfrentá-lo; mas, ali— e não sabendo bem nadar, — então, não, não, vezes nenhumas! Só protestou: — Eu não ofendi o senhor, seu canoeiro! Cada um sabe de si!... Será que até o senhor agora está tomando lado contra mim?!
— Bom, ‘tá bom... Ah, Deus que me livre. Se esteja... — Chico Barqueiro lento teve de responder.
E esticou para trás a cabeça, para coçar o gogó; ajeitou a gola da camisa; deu uma espiadela para o arame; empurrou com o pé um rolo de corda; e ficou depois soslaiando o outro, sem saber mais o que arrumar. Até que passou um pato-bravo, no vôo viageiro: pescoço avançado, patas juntas, deitando-se ora numa asa ora na outra; desviou-se do rumo da balsa, com uma timo nada da cauda, desceu mais, distanciou-se, tatalou três vezes e pousou nas tabuas da margem esquerda.
— Ôi’ai! Este veio de longe... Está de passagem. Os que vêm de perto, param quando chegam na deixa do rio. Mas, pato-do-mato que é de viagem, não pára: atravessa por cima do rio todo, e só baixa e fecha na outra beirada... Engraçado!
Assim, que fazem isso, ach’qu’é p’r’a-mor-de poder mais conhecer onde é que estão...
Sereno. Mas Turíbio Todo não lhe deu resposta. E o balseiro continuou: — Sei o jeito deles. Conheço esse gadinho de asa! Eles vivem p’ra lá e p’ra cá, aciganados, nunca que param de mudar... As vezes passam os bandos, arrumadinhos em quina, parece que p ‘ra o vento não poder esparramar... E arribam em tempos, a ver que está tudo de combinação...
Turíbio fingia não ver o sorriso de boa-vontade que o outro lhe oferecia. A correnteza crepitava, em tentativas de onda, ba tendo o madeirame, O rio aberto cheirava a chuva nova. E a balsa cheirava a breu e óleo bom.
— Tem os paturis...Tem os patos de cara vermelha...Tem o marreco de bico grande, e outro azulado, e um com enfeite de muitas cores. .. Tem o marrequinho rabudo, que assobia... Tem os irerês... tem as garças. Uma porção!... Mas não é toda raça de bicho de pena que voa por cima do rio, não senhor: gavião, passa dos grandes, dos de penacho, aguiados, sempre vindo do sertão... E nunca que voltam, parece que os outros matam esses, por aí... Eu cá nunca mato pássaro nenhum, O carapinhé costuma passar também, mas:’
quando vem voando atrás de passarinho pequeno, querendo pegar..
...Às vezes, dá d quando chegam, no tempo da seca, uns patinhos cansados, que devem de ter vindo de longe demais... Assim que eles, por erro, acham que isto aqui é o São Francisco, que tem lagoas nas beiras... Pensam p’ra pousar nas canas de taquariubá... Gente vê que eles estão não aguentando de ir, mas que não é capaz de terem sossego: ficam arando de asas, parece que tem alguém com ordem, chamando, chupando os pobres, de de longe, sem folgar... P’ra mim, muitos desses hão de ir caindo mortos, por aí... Não crê que tudo é o regrado esquisito, amigo?
— Acho sim.
O cavalo deu com a pata no gradil. Chico Barqueiro insistiu: — Animal vistoso, o seu. É esquipador? Tem bom andar?
— É... Tem... — resmungou Turíbio.
E ficou ainda mais sisudo, braços cruzados, olhos quase fechados, gozando da superioridade tão facilmente tomada, tão absoluta e pomposa, que ele só não levantava a cabeça porque papudo não gosta de fazer isso; mas se sentia com a consciência engordada, tranquila perfeitamente.
A terra veio avançando. Encostaram no abicadouro. Turíbio pagou.
— Vá com Deus!... — desejou-lhe ainda o balseador.
— Amém!... — respondeu Turíbio, já de costas, montando. E torou.
Com pouco, subia o caminho para a vista do tabuleiro abre-horizonte, onde corriam as seriemas, aos gritos e aos bandos de per nas compridas. Mas, daí por frente, Turíbio Todo começou a ver lugares que não conhecia. Campinas pardas, sem madeiras... Buriti-da-Estrada... Terra vermelha, “carne-de-vaca”... Pompéu... Indaiás nanicas, quase sem caules, abrindo as verdes palmas... Papagaio... E ele tocava de avança-peito, sempre no rumo e sul.
Então, nesses ares novos, coisas novas andaram-lhe pela cabeça, e veio-lhe também um grande desejo de repousar. Que bom, poder ficar livre de tantas canseiras... “Es-te-den-tro e este fora!”.. . Turíbio Todo tinha pulado fora da roda, e não mais brincou.
Veio subindo. Subiu até onde as cercas de arame farpado cediam lugar a tapumes de pau-a-pique — magras estacas negras fazendo-se umas às outras muitas mesuras. Subiu mais.
Agora avistava muramentos de pedras pretas, trabalho dos negros cativos. As pequenas fazendas não tinham mais varandas, somente escadinhas de pedras, com lajes empilhadas formando o pata mar. E o povo comia feijão preto, em vez de feijão mulatinho. E era gente boa, mas ainda mais desconfiada do que a sua. E, então, ele viu que tinha entornado outra cabaça de léguas, e que havia espichado mais mundo para trás.
De sorte que estava no começo da zona a que chamam de Oeste de Minas.
E deu com um rio, verde e guardado, um rio que a gente encontra sempre assim de repente, rio vivo, correndo por entre os matos, como um bicho.
— Que rio é este, tão bonito, moço?
— É o Pará... Pois então?!... Mas, vam’ passar p’ra o outro lado, que aqui tá braba a maleita!...
— Ah, isso não! Passar, não passo, que já atravessei dois mais não quero, porque quem passa três rios grandes esquece o seu bem-querer... Mas, qual é o comércio mais forte daqui por perto?
— É Sant’ Ana-do-São-João-Acima...
— Vou lá, p’ra ver se mando uma cartinha p’r’a mulher! Depois, uma turma de sujeitos alegres o interpelou. Iam para o sul, para as lavouras de café. Baianos são-pauleiros. E um deles:
— Eh, mano veélho! Baâmo pro São Paulo, tchente! ... Ganhá munto denheêro... Tchente!
Lá tchove denhêro no tchão!...
Sentiu saudades da mulher. Mas, era só por uns tempos. Mandava buscá-la, depois. Foi também.
Cassiano Gomes, regressando ao arraial, proferiu: — Negócio de vingança não paga a pena. Não quero saber mais! É melhor entregar p’ra Deus...
Mas, ao tempo em que ele falava, mansinho, sua mão, por descuido, à toinha, à toinha, alisava o cabo da lapiana, e por isso ninguém não acreditou.
E, enquanto pois, Cassiano continuava se encontrando com a mulher fatal da história, aquela mesma que tinha os olhos cada vez maiores, mais pretos e mais de cabra tonta. E
Dona Silivana lhe mostrara a carta enviada de Sant’Ana-do-São-João-Acima, e, depois, uma outra, também em papel quadriculado, capeando uma folhinha de malva com o coração e a flecha desenhados, cheia de saudades e vinda do Guaxupé.
— Foi p’ra o São Paulo.
— Ah, foi... Bobagem! Não carecia de ter ido... Gastei minha raiva... Se ele voltasse, eu nem não fazia nada... Se você escrever a ele, pode botar...
Mas Dona Silivana, com um olhar muito lânguido, concluiu: — Deix’ele p’ra lá... Assim não é melhor?...
Era, mesmo, e as mulheres têm sempre razão.
Não é à toa, porém, que um cavalheiro, excluído das armas por causa de más válvulas e maus orificios cardíacos, se extenua em raids tão penosos, na trilha da guerra sem perdão.
Cassiano Sentiu que, agora, ao menor esforço, nele montava a canseira.
E, do meio-dia para a tarde, não podia mais ficar calçado, por.. que os tornozelos começavam a inchar.
Foi ao boticário, e pediu franqueza.
— Franqueza mesmo, mesmo, seu Cassiano? O senhor...
Bem, se isso incha de tarde e não incha nos olhos, mas só nas pernas, é mau sinal...
— P’ra morrer logo?
— Assim sem ser ligeiro... Lá p’ra o São-João do ano que vem... Mas, já indo empiorando um pouco, aí por volta do Natal...
— Bom, está direito. Saúde é de Deus, seu Raymundo...
— P’ra nós todos, seu Cassiano, se Deus quiser ajudar!...
E Cassiano Gomes pensou: vendo tudo o que tenho, apuro o dinheiro, vou no Paredão-do-Urucuia, dar a despedida p’ra a minha mãe... Depois, então, afundo por aí abaixo, e pego o Turíbio lá no São Paulo, ou onde for que ele estiver. E despediu.. se de todo o mundo, sabendo que nunca mais iria voltar.
Mas, no caminho, foi piorando, e teve de fazer alto no Mosquito — povoado perdido num cafundó de entremorro, longe de toda a parte , — onde três dúzias de casebres enchiam a grota amável, que cheirava a grão-de-galo, murici e gabiroba, com vacas lambendo as paredes das casas, com casuarinas para fazerem música com o vento, e grandes jatobás diante das portas, dando sombra. Um lugar, em suma, onde a gente não tinha vontade de parar, só de medo de ter de ficar para sempre vivendo ali.
Pois foi lá que Cassiano Gomes teve o seu desarranjo, com insuficiência mitral em franca descompensação. Desceram-no do cavalo e deram-lhe hospitalidade. E ele foi para um jirau com a barriga de hidrópico e a respiração difícil de um cachorro veadeiro que volta da caça.
Melhorou. E rangia os dentes ao pensar em Turíbio Todo. Mas, graças a Deus, tinha dinheiro. Indagou se por ali não haveria um homem valente, capaz de encarregar-se de um caso as sim, assim... Dava até um conto de réis...
Não havia. Cassiano escolhera mal o lugar onde se derrear: no Mosquito era tudo gente miúda, amarelenta ou amaleitada, esmolambada, escabreada, que não conhecia o trem-de-ferro, mui pacata e sem ação. Não se alembravam de crimes sangrentos, não tinham mortes nas costas: — O senhor desculpe, mas, não vê que aqui ninguém não quer se desgraçar...
— E não terá alguém para levar recado para vir cá algum valentão de aí por perto?...
— Aqui por estas bandas mais chegadas, também, desse jeito, p’ra esse serviço, não tem ninguém...
— Então eu vou-m’embora! Já e já!...
Mas não pôde dar mais de três passos: cambaleou e teve de sentar-se à porta da cafua; e foi ali sentado que passou a passar todo o tempo, dia pós dia, com o peito encostado nos joelhos e, por via dos hábitos, com a winchester transversalmente no colo e a parabellum ao alcance da mão.
A paisagem era triste, e as cigarras tristíssimas, à tarde. Passavam uns porcos com as cabeças metidas em forquilhas, para não poderem varejar as cercas das roças. Passavam galinhas, cloqueando, puxando ninhadas para debaixo do marmelinho. E almas-de-gato, voando para os ramos escarlates do mulungu.
E os groteiros também passavam — mulheres de saia arregaçada, de pote à cabeça, vindas da cacimba; meninos ventrudos, brincando de tanger pedradas nos bichos ou de comer terra; e capiaus, com a enxada ou com a foice, mas muito contente si e fagueiros, num passinho requebrado, arrastando alpercatas, ou gingando, faz que ajoelha mas não ajoelha, ou ainda na andadura anserina, — assim torto, pé-de-pato, tropeçante.
E passou um irmão do Timpim, dando pancada no Timpim. Dada a desproporção física, isso era uma grande covardia, e Cassiano chamou: — O siô! Chega aqui!...
O irmão do Timpim veio chegando, pensando que era e ele, mas Cassiano o escaramuçou: — Sai p’ra lá, diabo! Tu é valente demais. Tu é ferrabrás... Sai daqui, que o baralho ainda não bateu na tua porta... Quando eu fizer cu1é-culé você pode acudir.
Então o Timpim pôde vir, muito ressabiado e bobó.
Cassiano perguntou:
— Cá mais p’ra perto, menino... Como é mesmo a sua graça?
— O senhor vai se rir de mim... Mas, se me chamar p meu nome direito, de António, ninguém não fica sabendo quem é... Timpim é apelido que eu não gosto... Antes mesmo me chamando de Vinte-e-Um.
Cassiano começou a rir, mas teve de parar, porque tossiu e botou sangue.
— Vinte-e-Um! Que graça!... Mas, que é que é isso, de uma pessoa se chamar Vinte-e-Um?
— É outro apelido que eles me chamam. É p’r’a-mór-de que nem que a minha mãe teve vinte e um filhos, e eu fui o derradeiro... E por via disso eles botaram esse nome em mim.
— E quem é aquele manguarão? Aquele grandalhão que estava te dando arrancos?
— É meu irmão Izé, sim senhor.
— Por que é que ele estava te batendo?
— Por causa que ele queria tomar de mim estas mandioquinhas ensoadas... E eu não dou, porque estou levando p’ra minha mulher, que teve criança, ant’ ontem, e não tem nada lá em casa p’ra ela comer!...
— Oh seu Vinte-e-Um! Pois então você é casado?... E é o primeiro filho?
— Nhor não, com esse é trêis... O primeiro morreu de ano, e o outro, que era mulher, nasceu morto de nascença.
— E por que é que você, que tem essa testa cabeluda de homem bravo, e essas sobrancelhas fechadas, juntando uma com a outra por cima do nariz, por que é que você ficou quieto e não bateu nele também?...
— Não vê que a minha mãe sempre falava p’ra eu não levantar a mão p’ra irmão meu mais velho... E, como eles todos são de mais idade, por isso todos gostam de dar em mim.
Cassiano inspecionava o matuto, olhando-o de alto para baixo e de baixo para o alto outra vez.
— Oh ferro!... E, me diz uma coisa: você é sempre assim durinho feito pedra? Nunca murgueia o corpo nem abaixa os ombros p’ra diante?
— Nhor não... Ach’que não... Sei não...
— Pois então, toma este dinheiro, p’ra comprar umas galinhas p’r’a sua patroa, e amanhã volta aqui...
Mas, no outro dia, o Timpim fez uma surpresa a Cassiano: trouxe o bebê, para “tomar benção”, todo enrolado em excesso de baetas e com a boquinha entupida por uma boneca de pano molhada em mel de abelha, servindo de chupeta. O Timpim, muito ganjento, exibia o seu rebento, e, quando alguém lhe gabava tão formosa prole, ele pedia, ansioso, que acrescentassem: — Benza-o Deus! — para evitar quebranto.
E o menino, que era engraçadinho e esperto, abriu os olhos para Cassiano, que, ante tanta fragilidade, se enterneceu:
— Será que nem minha mãe eu não vejo, em-antes de morrer?!... — gaguejou, soluçando.
Pediu que o levassem para a cama; mas já era outro homem, porque chorar sério faz bem.
E, no jirau, meio sentado, meio deitado, recostando-se numa pilha — de molambos, travesseiros e até um selim velho — que mulheres caridosas lhe arranjavam, arfando com esforço e tomando posições para poder sorver algum ar, se esqueceu armas de fogo e esperou a hora de morrer. A calma e a tristeza do povoado eram imutáveis, com cantigas de rolas fogo-apagou e de gaturamos, e os mugidos soturnos dos bois. E a do ambiente lhe ia adoçando a alma, enquanto que a cara ficava cada vez mais inchada, em volta dos lábios laivos azulados, e a doença lhe esgarçava o coração.
Pegou a pedir às velhas que viessem rezar à beira da enxerga. Queria que os meninos, miúdos meninos, brincassem ali perto; e dava-lhes dinheiro. E ficava calado, recontando os caibros, negros de picumã, e espiando a mexida das aranhas, que jogavam fios-a- prumo para subir e descer. E, pela primeira vez nesses meses, se lembrou do irmão assassinado, realizando ser por causa da morte do mesmo que ele andara em busca de Turíbio Todo. E também pensou no Céu, coisa que nunca tivera tempo de fazer até então.
E, pois, foi, um dia, quando ele estava pior e tinha mandado abrir a janela para que entrasse um sol fiscal, muito ardente, entrou-lhe também pelo quarto, de olhos vermelhos e nariz a escorrer, choramingante, o Timpim.
— Que foi que houve, Vinte-e-Um?
Era o filho, o neném, que estava doente, muito mal, mesmo, e, por míngua de recursos, quase a morrer. E o Timpim abriu o bué; mas as lágrimas corriam e ele não amolgava o busto. Cassiano perguntou:
— Me diz uma coisa,Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?
— Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono de nada desta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua, p’ra ele querer vir até cá?!... já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...
— Pois está aqui o dinheiro. Traz o doutor. Compra os remédios e tudo. Se precisar, ainda tem mais.
Timpim esbugalhava os olhos, achando difícil acreditar. De repente, chorou mais forte e se ajoelhou aos pés do benfeitor, querendo pegar-lhe da mão para beijar e proferindo agradeci mentos e bênção, por entre uma montoeira de soluços.
— Não é nada... Bobagem! ... — se esquivou Cassiano. — Eu estou querendo o médico é p’ra ele poder me olhar também... E aproveita p’ra trazer o padre junto, que eu ainda que ro me confessar...
Mas o Timpim teimava agora em beijar-lhe os pés, e, sempre se carpindo, exclamou: — Deus há de lhe dar o pago, seu Cassiano Gomes! Eu sim que não posso, por causa que não tenho préstimo nenhum... O menino é porque foi batizado na horinha em que nasceu, se não o senhor tinha de ser o padrinho!... Mas, assim, mesmo, se o senhor deixar, eu fico sendo seu compadre e o senhor fica sendo o meu compadre mais-de-todos, que eu de tantas caridades nunca hei de me esquecer!...
Então, Cassiano, por sua vez muito bem comovido, porque é melhor a gente ser bondoso do que ser malvado, puxou-o pa ra si, num abraço, dizendo: — Maior paga do que essa não tem, meu compadre Vinte-e Um...
E Cassiano Gomes não pôde esconder o consolo que isso tudo lhe trazia.
Veio o médico; veio o padre: Cassiano confessou-se, comungou, recebeu os santos-óleos, rezou, rezou.
Mandava o dinheiro para a mãe? Não. Mandou vir o Timpim, para nele rever a boa ação.
Conversaram. Depois o moribundo disse:
— Esse dinheiro fica todo para você, meu compadre Vinte-e-Um...
Aí, tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o Céu.

Turíbio Todo soube da boa notícia, por uma carta da mulher, que, agora carinhosa, o invocava para o lar. Ele tinha ganho já bons cobres, e a carta acabou de o convencer: comprou mala, comprou presentes, pôs um lenço verde no pescoço, para disfarçar o papo; calçou botas vermelhas, de lustre; e veio.
Saltou do trem também com uma piteira, um relógio de pulseira, boas roupas e uma nova concepção do universo. Mas tinha de fazer ainda um dia a cavalo e estava com pressa, porque Dona Silivana tinha os olhos bonitos, sempre grandes olhos, de cabra tonta. Por isso, ele nem teve tempo de negociar um animal: arranjou um cavalo emprestado; almoçou sem fome, e deu à andadura.
Venceu a primeira légua. A alegria da liberdade larga nem deixava sentir as bátegas que de vez em quando desciam, por que estava um dia incerto, de casamento de raposa ou de viúva, com uma chuvinha diáfana, oblíqua e apressada, correndo aqui e ali para disputar com o sol.
De repente, ouviu o tropel de um galope destemperado, que vinha atrás. Chegou o cavalo para a beira da estrada, parando à frente de uma sucupira, e espiou e esperou. Era um cavalinho ou égua, magro, pampa e apequirado, de tornozelos escandalosamente espessos e cabeludos, com um camarada meio-quilo de gente em cima.
O cavaleiro freou quase encostado em Turíbio, tal que, a um resfôlego da pileca, um floco de escuma branca voou-lhe no braço.
— Seu cavalo está com garrotilho, moço?
E Turíbio Todo apontou com o chicote as ventas do animal, que pulsavam, lambuzadas de uma clara de ovo batida.
— Nhor não... Folgou muito sem ser amontado... Por via disso é que está cansando à toa.
O capiau, com um sorrisinho cheio de cacos de dentes, ficou olhando para Turíbio, que também o examinava, com uma vontade doida de rir.
Porque o outro, à guisa de capote, trazia um saco de aniagem, cujas costuras laterais desfizera, enfiada a cabeça por um buraco no fundo; e a bizarra roupagem caía-lhe à frente e às costas, como a casula de um padre a dizer missa. Estava descalço, mas com enormes esporas nos calcanhares, e, para bater, trazia um galho de uvatinga na mão.
O cavalinho pampa — era mesmo um cavalo — com o rabo amarrado e a crina cortada rente, funga-funga, magrelo, se afinava pela mesma petição-de-miséria: o freio era de barbicacho; a sela um lombilho quase cangalha, faltando-lhe um estribo; e não tinha rabicho e nem peitoral.
O caguinxo tirou a faca e o fumo, o que, na convenção das estradas sertanejas, indica o desejo de puxar conversa. Mas Turíbio Todo levava urgência: — Se vai por este lado, vamos...
— Nhor sim...
E emparelharam os animais.
O capiauzinho deixou a rédea cair para a tábua-do-pescoço do pampinha, que pelejava para acompanhar a andadura do outro cavalo; e foi picando o fumo, minuciosamente, ajuntando-o na concha da mão.
Turíbio não lhe tirava os olhos de cima, achando-lhe uma graça imensa, na cara, no todo, na cavalgadura, na grenha piolhífera e no balandrau. Mas simpatizava com o tipo. E ofereceu-lhe o maço de cigarros.
O rapaz fez menção de pegar, mas encolheu a mão, brusco.
— Muito agradecido... Eu pito é destes nossos, dos de palha... A gente está acostumado com grossaria só...
Que impagável! — pensou Turíbio Todo.
O outro bateu a binga e tirou uma fumaça comprida, com o que pareceu criar coragem: — Ainda que mal pergunte, o senhor será mesmo o seu Turíbio Todo, seleiro lá na Vista-Alegre, que está chegando das tranjas?...
— Sou, sim. Vim do São Paulo... Como é que você está sabendo? Cheguei hoje...
— Me contaram, lá no comércio...
Turíbio riu. Cada vez gostava mais do caipirinha.
— Por que é que uns como você não vão também trabalhar lá? Podiam ganhar dinheiro, aprender a viver. Isto, por aqui não é vida, é uma miséria-magra de fazer dó!... Se você quiser ir, eu explico tudo direito, te ajudo com dinheiro, até.
— Qual!... A gente nasceu aqui, vai ficando por aqui mesmo..
E, atrapalhado, como quem quisesse mudar de assunto, o capiau mostrou: _Vigia só!
Nos galhos mais altos do landi, um saguim, mal penteado e careteiro, fazia gatimanhas, chiando e dando pinotes. Os cavaleiros estacaram. Turíbio Todo tirou o revólver e apontou.
Mas o macaquinho se escondia por detrás do pau, avançando, de vez em quando, só a carinha, para espiar. E Turíbio se enterneceu, e tornou a pôr a arma na cintura.
Enquanto isso, o mico espiralava tronco abaixo e pulava para o vinhático, e do vinhático, para o sete-casacas, e do sete-casacas para o jequitibá; desceu na corda quinada do cipó-
cruz, subiu pelo rastilho de flores solares do unha-de-gato, galgou as alturas de um angelim; sumiu-se nas grimpas; e, dali, vaiou.
— Deixa o coitado! Para que judiar dessas criaçãozinhas do ma to?... Eles também precisam de viver... Lá no São Paulo, um dia...
— O senhor, por quanto foi que comprou esse seu cavalo?
Turíbio Todo voltou-se, surpreendido, inquieto, porque o camarada, tão humilde e mofino, o interrompera pela segunda vez.
— É animal só emprestado... vamos para diante. Isto aqui é a Restinga?...
— Nhor não, é o Quilombo.
Aqui e ali, uma cafua de capim, à borda da estrada, no meio das bananeiras.
— Vamos mais depressa, moço, que eu estou aflito para chegar!...
Deram no vau de um córrego. Um velho, de saco nas costas, Vinha de lá, passando a pinguela; quis cumprimentar e quase Caiu, custando-lhe reajustar o equilíbrio. Na lama lisa da margem, borboletas amarelas pousavam, imóveis, como pétalas num chio de festa.
Os cavalos, metidos até meia canela na correnteza, dobravam o pescoço em ângulo obtuso, para beber. Cardumes de piabinhas, chofrando corridas ou oscilando no mesmo lugar com palpitações de aletas, rabeavam na transparência da água, que os animais sorviam num chorro copioso.
O ar era fresco. Do morro, vinha um cheiro bom de musgo, de barba-de-pau, de verdura velha. E a sela estava tão macia e tão embalador o marulho, que Turíbio estirou uma perna no estribo e ficou olhando, com afeto, para um cavalinho-de-judeu, que pairava faiscante e acabou pousando no látego do cabresto.
O caguinxo também ficara quieto, mesmando, vendo, a cada movimento dos cavalos, a lama subir na água e turvar-lhe a face. E foram os próprios animais que, matada a sede, retomaram a marcha.
— Eu estou bem alegre!... Vou ver minha mulher; que há muito tempo eu não vejo... Acho que amanhã de-tardinha eu estou chegando lá, no sítio da mãe dela. Se ela quiser ir comigo, nós voltamos para o São Paulo... Quero descansar um pouco e gozar a vi da... — disse Turíbio Todo, com um suspiro de satisfação.
— Qual, seu Turíbio Todo... Com perdão da palavra, mas es te mundo é um monte de estrume! Não vale a pena a gente ficar alegre... Não vale a pena, não.
— Ora, deixe de curtir mal sem paga... Que é isso!?...
— A gente vive sofrendo... Todo o mui é só padecer... Não vale a pena!... E depois a gente tem de morrer mesmo um dia...
— Sabe? Você precisa é de tratar da saúde, para não ficar com essas ideias... — Turíbio aconselhou.
Calou-se o outro. Muito abatido, lúgubre, dava o ar de quem estivesse carregando o peso do mundo.
Subiram um morro, desceram o morro; e o caminho entrou num mato fechado, onde tudo era silêncio e sombra. Um dos cavalos bufou e mastigou os ferros do freio. Das ramadas, que açoitavam os rostos dos cavaleiros, caía chuva guardada. E, de repente, Turíbio Todo estremeceu, ao ouvir, firme e crescida, outra voz, que ainda não tinha escutado ao capiau: — Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!
— Que é? Que é?...Tu está louco?!...
Mas o caguinxo estava sério e pálido, e sua mão direita segurava uma garrucha velha, de dois canos, paralelos, sinistros.
— Se apeie depressa, seu Turíbio!...
E o homenzinho dizia isso assim mole, mas sem deixar de estar terrivelmente atento.
Então Turíbio Todo, encarando-o, fez figura e fez voz.
— Deixa de unha, cachorro, que eu te retalho na taca!
— Não grita, seu Turíbio, que não adianta... Peço perdão a Deus e ao senhor, mas não tem outro jeito, porque eu prometi ao meu compadre Cassiano, lá no Mosquito, na horinha mesma d’ele fechar os olhos...
Ao ouvir o nome do inimigo, Turíbio Todo teve um maior sobressalto. A mão da garrucha do capiauzinho tremia. Turíbio também pegou todo a tremer.
— Ah, quanto é que ele te pagou? Eu posso dar o dobro, te dou tudo o que eu tiver!...
— Não tem jeito, não tem jeito, seu Turíbio... Abaixo de Deus, foi ele quem salvou a vida do meu menino... E eu pro meti, quando ele já estava de vela na mão... É uma tristeza! Mas jeito não tem... Tem remédio nenhum...
Atônito,Turíbio arregalava os olhos, e sentia o medonho que e a falta de tempo para a gente poder pensar.
— Escuta... Eu também tenho família... Tenho...
— Se apeie, seu Turíbio...
— Pelo amor da Virgem Santíssima! Pelo amor do teu filho! Não faz isso! Deus castiga!...
Não me mata...
— Pois então reza, seu Turíbio, que eu não quero a sua perdição!
Aí Turíbio Todo teve um grande arranco de horror, e estendeu os braços.
— Espera! Espera! Não atira ainda não...
E levantou a mão à testa, se benzendo, com voz gritada, em que o choro já começava a tremer:
— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém!... Padre nosso...
Mas, não! Assim como um carneiro, não! Curvou de banda e puxou o revólver, e foi um golpe de rédeas e outro de esporas, fazendo o cavalo se empinar.
Mas a garrucha não negou fogo. Turíbio Todo pendeu e se afundou da sela, com uma bala na cara esquerda e outra na testa, O cavalo correu; o pé do defunto se soltou do estribo. O corpo prancheou, pronou, e ficou estatelado.
Então, o caguinxo Timpim Vinte-e-Um fez também o em-nome-do-padre, e abriu os joelhos, esporeando. E o cavalinho pampa se meteu, de galope, por um trilho entre os itapicurus e os canudos-de-pito, fugindo do estradão.



“Tira a barca da barreira,
deixa Maria passar:
Maria é feiticeira,
ela passa sem molhar.”

(Cantiga de treinar papagaios)

- João Guimarães Rosa, no livro "Sagarana". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
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Veja aqui Biobibliografia do autor:

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