Orientação - João Guimarães Rosa

© Paul Gauguin

— Uê, ocê é o chim? 
— Sou, sim, o chim sou. 
O cule cão.

Orientação

Em puridade de verdade; e quem viu nunca tal coisa? No meio de Minas Gerais, um joãovagante, no pé-rapar, fulano-da-china — vindo, vivido, ido — automaticamente lembrado. Tudo cabe no globo. Cozinhava, e mais, na casa do Dr. Dayrell, engenheiro da Central.
Sem cabaia, sem rabicho, seco de corpo, combinava virtudes com mínima mímica; cabeça raspada, bochêchas, o rosto plenilunar. Trastejava, de sol-nascente a vice-versa, sério sorrisoteiro, contra rumor ou confusão, por excelência de técnica. Para si exigia apenas, após o almoço, uma hora de repouso, no quarto. — “Joaquim vai fumar...” — cigarros, não ópio; o que pouco explicava.
Nome e homem. Nome muito embaraçado: Yao Tsing-Lao — facilitado para Joaquim. Quim, pois. Sábio como o sal no saleiro, bem inclinado. Polvilhava de mais alma as maneiras, sem pressa, com velocidade. Sabia pensar de-banda? Dele a gente gostava. O chinês tem outro modo de ter cara.
Dr. Dayrell partiu e deixou-o a zelar o sítio da Estrada. Trenhoso, formigo, Tsing-Lao prosperou, teve e fez sua chácara pessoal: o chalé, abado circunflexo, entre leste-oeste-este bambus, árvores, cores, vergel de abóboras, a curva ideia de um riacho. Morava, porém, era onde em si, no cujo caber de caramujo, ensinado a ser, sua pólvora bem inventada.
Virara o Seô Quim, no redor rural. A mourejar ou a bizarrir, indevassava-se, sem apoquenturas: solúveis as dificuldades em sua ponderação e aprazer-se. Sentava-se, para decorar o chinfrim de pássaros ou entender o povo passar. Traçava as pernas. Esperar é um à-toa muito ativo.
E — vai-se não ver, e vê-se! Yao o china surgiu sentimental. Xacoca, mascava lavadeira respondedora, a amada, por apelido Rita Rola — Lola ou Lita, conforme ele silabava, só num cacarejo de fé, luzentes os olhos de ponto-e-vírgula. Feia, de se ter pena de seu espelho. Tão feia, com fossas nasais. Mas, havido o de haver. Cheiraram-se e gostaram-se.
De que com um chinês, a Rola não teve escrúpulo, fora ele de laia e igualha — pela pingue cordura e façatez, a parecença com ninguém. Quim olhava os pés dela, não humilde mas melódico. Mas o amor assim pertencia a outra espécie de fenômenos? Seu amor e as matérias intermediárias. O mundo do rio não é o mundo da ponte.
Yao amante, o primeiro efeito foi Rita Rola semelhar mesmo Lola-a-Lita — desenhada por seus olhares. A gente achava-a de melhor parecer, senão formosura. Tomava porcelana; terracota, ao menos; ou recortada em fosco marfim, mudada de cúpula a fundo. No que o chino imprimira mágica — vital, à viva vista: ela, um angu grosso em fôrma de pudim. Serviam os dois ao mistério?
Ora, casaram-se. Com festa, a comedida comédia: nôivo e nôiva e bolo. O par — o compimpo — til no i, pingo no a, o que de ambos, parecidos como uma rapadura e uma escada. Ele, gravata no pescoço, aos pimpolins de gato, feliz como um assovio. Ela, pompososa, ovante feito galinha que pôs. Só não se davam o braço. No que não, o mundo não movendo-se, em sua válida intraduzibilidade.
Nem se soube o que se passaram, depois, nesse rio-acima. Lolalita dona-de-casa, de panelas, leque e badulaques, num oco. Quim, o novo-casado, de mesuras sem cura, com esquisitâncias e coisinhiquezas, lunático-de-mel, ainda mais felizquim. Deu a ela um quimão de baeta, lenço bordado, peça de seda, os chinelinhos de pano.
Tudo em pó de açúcar, ou mel-e-açúcar, mimo macio — o de valor lírico e prático. Ensinava-lhe liqueliques, refinices — que piqueniques e jardins são das mais necessárias invenções? Nada de novo. Mas Rola-a-Rita achava que o que há de mais humano é a gente se sentar numa cadeira. O amor é breve ou longo, como a arte e a vida.
De vez, desderam-se, o caso não sucedeu bem. O silêncio pôde mais que eles. Ou a sovinice da vida, as inexatidões do concreto imediato, o mau-hálito da realidade.
Rita a Rola se assustou, revirando atrás. Tirou-se de Quim, pazpalhaço, o dragão desengendrado. Desertou dele. Discutiam, antes — ambos de cócoras; aquela conversação tão fabulosa. E nunca há fim, de patacoada e hipótese.
Rola, como Rita, malsinava-o, dos chumbos de seu pensamento, de coisa qual coisa. Chamou-o de pagão. Dizia: — “Não sou escrava!” Disse: — “Não sou nenhuma mulher-da-vida...” Dizendo: — “Não sou santa de se pôr em altar.” De sínteses não cuidava.
Vai e vem que, Quim, mandarim, menos útil pronunciou-se: — “Sim, sim, sei...” — um obtempero. Mais o: — “T’s, t’s, t’s...” — pataratesco; parecia brincar de piscar, para uma boa compreensão de nada. Falar, qualquer palavra que seja, é uma brutalidade? Tudo tomara já consigo; e não era acabrunhável. Sínico, sutilzinho, deixou-lhe a chácara, por polidez, com zumbaia. Desapareceu suficientemente — aonde vão as moscas enxotadas e as músicas ouvidas. Tivessem-no como degolado.
Rita-a-Rola, em tanto em quanto, apesar de si, mudara, mudava-se. Nele não falava; muito demais. — “De que banda é que aquela terra será?” Apontou-se-lhe, em esmo algébrico, o rumo do Quim chim, Yao o ausente, da Extrema-Ásia, de onde oriundo: ali vivem de arroz e sabem salamaleques.
Aprendia ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir. Ora quitava-se com peneiradinhas lágrimas, num manso não se queixar sem fim. Sua pele, até, com reflexos de açafrão. — “Tivesse tido um filho...” — ao peito as palmas das mãos.
Outr’algo recebera, porém, tico e nico: como gorgulho no grão, grão de fermento, fino de bússola, um mecanismo de consciência ou cócega. Andava agora a Lola Lita com passo enfeitadinho, emendado, reto, proprinhos pé e pé.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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