Gauchês: a única língua sustentável - Eliane Brum

Gaúchos, Portinari - 1938

Gauchês: a única língua sustentável

Dedicado à minha amiga Giovana Villanova Maciel, especialista em gauchês que me ensinou a enxergar a beleza da gramática riograndense, numa longa conversa em que nenhuma de nós desperdiçou um único “s”

— Vou escovar os dente!

Digo eu toda noite. Escovo os dente em outros horário do dia, também. Assim como lavo os pé, em vários momento. E mais ainda as mão. Mas é à noite que gosto de anunciar. Não sei por quê. E não passa uma noite sem que o infeliz rebata:

— Um dente só?

Parece um mero diálogo doméstico. Não é. Nestas duas frases mora o paradoxo contemporâneo.

Eu, gaúcha, muito à frente do meu tempo, como todos os gaúcho. O infeliz, carioca-paulista, ainda no século XX. Eu, consciente da exaustão dos recurso do planeta, o infeliz consumindo os recurso do planeta como se houvesse amanhã. Eu economizando esse. O infeliz desperdiçando esse.

Esta é a sina do gaúcho. Ser um visionário — e pagar o preço no olhar invejoso dos que não tiveram a sorte de nascer abaixo do Mampituba. Maior é a desgraça se tu precisar dividir não só o país, mas a casa com um não gaúcho, como é a minha desventura. Eu, anos-luz além, e o pedrobó resmungando: “Esqueceu do plural”. Mimimimimimi.

O mundo acima de nossas praia de Santa Catarina fazendo estardalhaço com a Rio +20, e depois chorando as pitanga que deram com os burro nágua. Nós, gaúcho, nem as hora. Em vez de propor, a gente pratica a única língua sustentável do planeta — quiçá da Via Láctea e além — no dia a dia. Elegantes, sem alarde, sem precisar mostrar os peito na rua.

Como eu sei o quão duro é não ser gaúcho, vou tentar simplificar para até mesmo um paulista ou um carioca entenderem. A pesquisa é de Harvard, desenvolvida, claro, por um gaúcho que botou uns gado e plantou umas soja lá nos campo da Ivy League pra dar uma racionalizada no Primeiro Mundo. Teve uns problema, especialmente quando tentava derrubar um daqueles prédio véio pra fazer uma coisa vistosa, com bastante cimento. Mas não esmoreceu, que o bicho era bagual.

Como até meu guaipeca sabe, um esse não pronunciado é um esse a menos na atmosfera, é um esse a menos a esburacar a camada de ozônio, é um esse a menos a piorar o efeito estufa. Segundo o gaúcho de Harvard, um neto do gaúcho de Bagé, um gaúcho comum economiza cerca de 5 esse por minuto, 300 esse por hora, 7.200 esse por dia, 216 mil esse por mês, 2,6 milhão de esse por ano. Contando apenas a população do estado, seriam bilhões de esse a menos por ano.

Entendeu? Já vi que não. Como acabei de voltar de uma temporada de ilustração no Rio Grande, coisa que todo gaúcho expatriado precisa fazer de três em três mês, no mínimo, pra não embotar, estou magnânima. É o efeito de terminar o dia admirando o pôr-do-sol mais bonito do mundo. Vou explicar as regra melhor enquanto minha magnanimidade não passa. Mas, atenção, percebam a beleza, a harmonia, o equilíbrio contido nessa fórmula simples. É quase uma Mona Lisa. Ou um poema do Jaime Caetano Braun, o que dá no mesmo.

Pra ficar em um exemplo familiar ao leitor, vamo usar a conjugação com a palavra “dente”.

Se for um dente, é como entre os não gaúcho. Tu diz “um dente”. Pronto, todo mundo sabe que é um.

Já se forem dois dente, tu diz exatamente assim: “dois dente”. Teu interlocutor já sabe que se trata de mais de um, menos de três dente.

Agora, se forem mais de dois dente, pra facilitar — e esta, na minha opinião, é a parte mais sofisticada do raciocínio —, tu diz: “os dente tudo”.

Recapitulando.

Um dente = 1.

Os dente = mais de 1, menos de 3.

Os dente tudo = entre 3 e zilhão.

Agora, aqui em casa, acabei de dizer, elegante, proativa e sustentável:

— Vou escovar os dente tudo.

O imundícia, com a prepotência que só a ignorância permite, não alcançou. Tascou:

— Aproveita e vê se encontra em algum lugar da língua os plural tudo.

O azar do vivente era que o efeito do pôr-do-sol já tinha passado. Puxei meu canivete suíço (ando meio fresca depois que me mudei pra Sumpaulo), botei no pescoço do abostado e indaguei uma vez só: “Pode escolher. Quer que eu arranque a guampa, as guampa ou as guampa tudo?”.

Que guampa?, o estropício teve a incautidão de perguntar.

Guardei o canivete. Mais vale um corno manso na mão do que os corno tudo avoando.


- Eliane Brum, crônica publicada originalmente na revista “Vida Breve”, em 10.7.2012.


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