A espingarda do rei da Síria - José J. Veiga

Paul Gauguin
A espingarda do rei da Síria

A Vida não estava tratando bem o Juventino Andas desde que ele perdera a espingarda numa espera. Para um caçador de fama e rama, perder a espingarda numa espera pode parecer um feito desonroso — mas é preciso atentar para as circunstâncias. Ninguém esperava chuva aquela noite, e choveu; a lanterna, que ele havia experimentado antes de sair de casa, falhou no mato; e o cavalo, assustado por alguma onça, arrebentou o cabresto e fugiu. Foi quando procurava o cavalo na noite escura que Juventino rolou numa grota, perdeu a espingarda e ainda destroncou um braço. No outro dia o cavalo apareceu na porteira de Seu Ângelo Furnas com a sela quase na barriga e a crina cheia de carrapicho. Seu Ângelo reconheceu-o e o recolheu e mandou recado para Juventino. Sendo homem sem malícia, apesar de caçador, Juventino achou que devia agradecer a gentileza contando candidamente como se apartara do cavalo. Ângelo ouviu com simpatia, fez uma pergunta aqui outra ali, não mostrou ter achado graça, e nada disse que pudesse ferir a reputação do amigo; mas depois de uma visita que fez à cidade um ou dois dias mais tarde, todo mundo estava gozando o lado cômico do episódio. Juventino não percebeu de logo o que era que lhe estava acontecendo, e até contribuiu para o riso geral acrescentando uma ou outra informação que havia omitido na conversa com Seu Ângelo; mas quando desconfiou que o assunto estava rendendo mais do que a sua importância justificava, já era tarde para recolocar as coisas na sua exata perspectiva. Aos olhos dos amigos ele era agora como um soldado que perdeu a arma na guerra. Tudo o que ele dissesse agora teria que ser pesado contra esse único e singelo episódio. Juventino achou que o mais acertado naquelas circunstâncias era viver mais para si e evitar locais como a farmácia de Seu Castiço, que era uma espécie de bolsa de comentários sobre caçadas.
Mas a perda do prestígio de caçador não foi o único aborrecimento de Juventino; havia outro igualmente grande: a privação de caçar, por falta de espingarda. Enquanto aos sábados os outros preparavam seus cartuchos, arreavam seus cavalos e saíam para o Ouro-Fino, os Peludos ou a Mandaquinha, ele ficava em sua janela fumando cigarros de palha, cuspindo nas pedras da calçada e olhando as beatas passarem para o terço. Uma vez, quando a coceira que dizem dar na nuca dos caçadores ficou muito forte, Juventino venceu o escrúpulo e foi pedir a espingarda de Manuel Davém, que ele sabia estar de cama com a ciática. Manuel arregalou os olhos e rebateu quase desesperado: — Emprestar a minha espingarda? Não, Seu Juventino. O senhor me desobrigue, isso eu não posso. Empresto o cavalo, os arreios, se o senhor quiser. A espingarda não.
Havia também os que se fingiam de inocentes, passavam e perguntavam como se não soubessem de nada: — Uai, Seu Juventino, o senhor brigou com as pacas? Mas isso só acontecia porque ele não gostava de criar questão.
Se ele fosse como o tenente Aurélio, daria uma resposta arrepiada, e quem não gostasse que corresse dentro. Alguém ia querer briga com tenente Aurélio? Se tenente Aurélio tivesse perdido a espingarda, que teria acontecido? Nada. Nada. Teria comprado outra, se não ganhasse de presente. Foi esperar, choveu, a lanterna zangou, a onça espantou o cavalo, o caçador rolou numa grota, perdeu a espingarda. Não pode acontecer? Alguém ia rir? Ia! Mas uma coisa dessas só é natural quando acontece a quem pode comprar outra arma no dia seguinte; a graça está justamente quando o caçador não tem recurso e fica impossibilitado de praticar o seu divertimento, isso é que é engraçado e dá assunto. Se Juventino não fosse como era não haveria problema nenhum. Ele iria ao Dr. Amoedo e mandaria suspender o trabalho da dentadura porque precisava do dinheiro para comprar uma espingarda; mas com o trabalho já começado era preciso coragem para fazer isso.
De sorte que naquela ocasião a vida de Juventino girava em volta de uma espingarda, ou da falta de uma espingarda. Por caminhos ocultos o seu pensamento voltava sempre ao mesmo assunto. As pessoas que conheciam o seu problema — eram quase todos na vila — podiam acompanhar os seus silêncios, os seus suspiros, os seus sorrisos secretos e ver na frente uma espingarda.
Como daquela vez que ele entrou na loja de Seu Gontijinho para comprar um par de ligas e estava lá um cometa. Seu Gontijinho era um homem muito delicado, um dos poucos que não caçoavam de Juventino pela perda da espingarda. Era pequenino, usava óculos sem aro e piscava avidamente.
Seu Gontijinho pediu a opinião de Juventino sobre determinado artigo que o cometa estava oferecendo, Juventino gostou da consideração e demorou-se mais do que de costume. O cometa também era simpático, chamava as pessoas pelo nome e tinha sempre coisas engraçadas para dizer. Quando chegou aos mostruários dos cachimbos ele escolheu o mais bonito e deu-o a Juventino para admirar e aproveitou a ocasião para contar que os colonizadores ingleses na África arranjaram uma maneira muito prática de curtir cachimbo novo: retiram o canudo e dão o cachimbo para um preto fumar; quando o cachimbo está bem curtido tomam-no de volta e colocam novamente o canudo novo.
Juventino ouviu a história e ficou muito tempo com o cachimbo na mão, os olhos parados longe. Depois, sem perceber que era observado, ergueu o cachimbo à altura do rosto, segurando-o pelo bojo, fechou um olho em pontaria e deu um estalo com a boca.
O cometa olhou desconfiado e tratou de recuperar o cachimbo para o mostruário. Seu Gontijinho olhou, piscou e perguntou a Juventino o que ele achava de uns borzeguins de bico fino que o cometa havia oferecido antes a preço de saldo. Juventino pensou e disse que era capaz de encalhar, todo mundo agora estava querendo era sapato bico de pato, era a moda. Seu Gontijinho concordou e encomendou só meia dúzia de pares para atender os fregueses mais velhos.
Juventino estava sentado em sua mesa no cartório fumando um cachimbo, e apesar de ser pela primeira vez ele não tossia, nem engasgava, nem sentia nada do que dizem sentir o cachimbeiro principiante, achava até bom; e como o cachimbo não era dele, ele já sentia pena de ter de devolvê-lo mais cedo ou mais tarde. Provavelmente por isso ele queria aproveitar ao máximo o cachimbo, chupando-o sem parar nem mesmo para descansar e enchendo-o de cada vez que ele começava a chiar e pipocar e que o ar quente que saía pelo canudo ameaçava queimar-lhe a língua.
Tão calmante era o efeito do cachimbo que Juventino sentia-se leve e otimista, e até um tanto importante. O problema que o vinha preocupando nos últimos tempos, e que lhe pesara tanto na cabeça ainda no dia anterior, agora parecia primário e distante. De pernas esticadas, pés cruzados na mesa, as costas no descanso da cadeira, ele olhava pela janela e via o largo muito verde pendendo em brando declive até quase tocar os telhados da rua lá embaixo, animais pastando peados entre os pés de vassourinha. Era engraçado vê-los de longe movendo-se aos saltos como se brincassem de pular de pés juntos. Se não fosse maldade, nem desse processo, ele podia derrubá-los todos um a um sem se levantar do lugar; bastava esticar a mão e apanhar a espingarda que descansava no estojo de couro no chão ao pé da mesa. Mas naturalmente ele não ia fazer isso, era preciso fazer bom uso da espingarda, como dissera Sua Majestade na carta.
Juventino abriu a gaveta, tirou a carta e leu-a mais uma vez, apesar de já sabê-la de cor. Cada vez que ouvia o eco daquelas palavras e pensava na espingarda brilhando em seu estojo, ele gostava porque sentia estar vivendo. Antes, mesmo quando ainda tinha a velha espingarda, ele estava sempre adiando o momento de viver; mas agora era diferente, agora o presente era mais importante do que o futuro.
Mas é claro que nenhum homem pode viver por muito tempo contente apenas com as ofertas do presente; o futuro é tão tentador que acaba sempre metendo a cabeça aqui e ali. Juventino encheu o cachimbo mais uma vez, e enquanto soprava levemente a fumaça — não soprava forte porque queria ver o redemunho iluminado pela fresta de um olho-de-boi no telhado — ele pensava nas pessoas que logo o estariam visitando para ver a espingarda e elogiar a qualidade dela, evidente a qualquer pessoa que conhecesse pelo menos um pouco de arma de fogo.
O primeiro que ele gostaria de ver era Manuel Davém. Pagaria a pena ver a cara dele quando o estojo fosse aberto e a espingarda exibida. Com certeza Manuel ia querer manejá-la, examinar o cano por dentro, e até pedir para dar uns tiros, mas isso Juventino não consentiria, uma espingarda para ser sempre boa não deve andar de mão em mão, como pertence de grêmio.
Juventino não havia ainda terminado com Manuel Davém quando o coronel Bernardo Campeio gritou ó-de-casa no corredor e foi entrando sem esperar resposta. Usava chapéu de copa redonda — não amassava para não estragar — paletó de peito fechado, como blusa de soldado, chinelos de couro de anta e bengala de guatambu. Entrou e foi descansando a bengala e o chapéu em cima da mesa e procurando o lenço para enxugar a testa e a carneira do chapéu, suor estraga muito o couro.
A visita do coronel deixou Juventino incomodado porque as relações entre eles não andavam muito boas desde que o coronel cessara de convidar Juventino para o jogo de truco. E da maneira que as coisas aconteceram dava mesmo para desconfiar. Juventino era parceiro certo todos os sábados, e nos intervalos cantava modinha com a filha do coronel, a menina Andira. Diziam que havia namoro entre os dois, mas nessas coisas o povo conversa muito. Um dia Andira não apareceu na sala, e quando alguém perguntou por ela — não Juventino, ele era muito discreto — a mãe informou que se deitara cedo com dor de cabeça. Da vez seguinte também não apareceu, tinha ido visitar umas amigas. E antes do terceiro sábado o coronel Bernardo mandara dizer que o jogo estava suspenso por enquanto, quando recomeçasse avisaria. Depois Juventino soube que estavam jogando sempre, só não haviam jogado uma vez. A gente bate na cangalha para o burro entender, pensou Juventino — e guardou a mágoa.
O coronel Bernardo estava agora na frente de Juventino enxugando o suor da testa. Juventino levantou sem dizer nada, não queria comprometer-se nem por um lado nem por outro. Se a visita fosse de paz, o gesto de levantar-se podia ser tomado como uma deferência; se fosse de guerra, seria um movimento estratégico.
O coronel guardou o lenço no bolso traseiro da calça, com certa dificuldade porque a blusa era comprida e justa, e disse em sua voz grossa descansada: — O senhor ganhou na loteria, Seu Juventino?
— Que me conste, não... Mas não atino.
— Pensei, não é? Deixou de procurar os pobres... Juventino pensou para ver se entendia, depois disse: — Coronel, eu só gosto de ir onde sou esperado.
— Pois lá em casa todos estamos te esperando. Andira sempre pergunta, Anica também vive clamando a sua falta. Pensam que você está estremecido com a gente. Eu disse que com certeza você ficou rico.
— Ora essa, coronel...
— Fale franco comigo, Seu Juventino. Onde entra a franqueza não entra a vileza.
Essa era boa, pensou Juventino. Agora a culpa era dele! — Eu cuidei que estava estorvando, coronel...
— Com efeito, Seu Juventino! A sua falta é que estorva. Quem entende uma coisa dessas, pensou Juventino. Quando a gente pensa que está rostindo, está tinindo, quando pensa que está chegando está zarpando. Erra quem confia, erra quem desconfia. Quem desiste acerta? Ficou combinado que à noite Juventino comparecia para um truco extraordinário, e o coronel pediu licença para ir chegando, precisava encomendar os perus e os leitões e ver se o Tome tinha foguetes prontos.
Juventino não quis olhar mais longe porque já adivinhava que antes do Ano Novo ele e Andira estariam casados.
Ele estava ainda sorrindo sozinho quando a porta abriu-se novamente com um chiado tímido e uma figura magra e baixota apareceu na sala. Vestia roupa preta, colarinho duro e chapéu felpudo debruado. Era o Dr. Góis — Deodato Góis Félix — proprietário da empresa de força e luz, de quase todas as casas da Rua Direita, do único automóvel da vila, e o homem a ser adulado pelos candidatos a intendente. Não era um homem com quem Juventino normalmente conversasse, o Dr. Góis tinha inclinações aristocráticas, só falava com proprietários, assim mesmo nem todos, e não tomava a iniciativa de cumprimentar ninguém, quem quisesse ouvir-lhe a voz teria que falar primeiro. Sabendo disso, Juventino não perdia tempo com ele, tinha um emprego vitalício e não precisava sabucar ninguém.
Vendo-o entrar em seu gabinete, Juventino não se levantou, como manda a cortesia; mas o Dr. Góis não se mostrou ofendido. Cumprimentou Juventino, e até muito alegre. Juventino respondeu sem entusiasmo, e nada fez para encadear a conversa, se é que o Dr. Góis queria conversar. Uma pessoa sem traquejo ficaria embaraçada com essa frieza, mas não o Dr. Góis. Ele sabia o que fazer em qualquer ocasião, e fazia-o com naturalidade. Enfiando a mão no bolso esquerdo do paletó, tirou uma penca de bananas-ouro bem madurinhas, podia-se ver o chamuscado da casca e sentir o cheiro. O Dr. Góis quebrou duas gêmeas para ele e passou a penca a Juventino.
— O senhor é servido? São muito macias, e não pesam no estômago. Meu pai dizia: das frutas, a banana; das bananas, a ouro.
Juventino tomou as bananas e foi comendo-as calado, não se sentia obrigado a dizer nada. A felicidade tem mais essa vantagem de deixar a pessoa ser ela mesma, não mudar diante de estranhos. Juventino foi comendo as bananas como gostava de fazer quando era criança, não as descascava, chupava-as por uma ponta, apertando a casca entre os dedos. As cascas espremidas ele ia jogando nas ripas do teto, umas caíam, outras ficavam presas. Parece que o Dr. Góis achou o divertimento interessante porque meteu a mão no outro bolso e tirou mais bananas para jogar as cascas nas ripas. De cada vez que conseguia encaixar uma, ria grosso na clave do ó, dava pulos e batia palmas.
Pareceu a Juventino que o doutor estava levando vantagem porque jogava as cascas abertas e de pé. Estabeleceram-se regras para o jogo, e como a maior parte das cascas acabaram presas no teto mandaram buscar mais um cacho de bananas para continuarem a brincadeira. Com o rumor que faziam, as pessoas que passavam na rua iam parando e chegando-se para olhar, chamavam outras, e logo as janelas do cartório estavam duras de gente.
Quando, horas depois, Juventino declarou que ia parar, o Dr. Góis insistiu que continuassem, estava tão bom o brinquedo. Juventino respondeu que tinha muito o que fazer, precisava escrever uma carta caprichada ao Rei da Síria. O doutor perguntou se não podia deixar para depois, seria uma pena terem que parar só por isso, mas Juventino disse que precisava comunicar ao rei o recebimento da espingarda, era uma questão de gentileza com Sua Majestade.
— Ora, uma espingarda! — disse o doutor fazendo pouco. — Vamos brincar. Eu interesso você em minha empresa.
Juventino respondeu que a proposta vinha tarde, agora ele estava comprometido com o Rei da Síria. O doutor agarrou-o pela manga e disse, instante: — A eleição vem aí. Eu faço você intendente.
— Grande! Grande! Viva o intendente! — gritou a multidão do lado de fora, alguns imitando com a boca o chiado e o estouro de foguetes.
Juventino chegou à janela e a gritaria aumentou. Era preciso fazer um discurso, seria bobagem esperar a formalidade de eleição, já estavam todos aplaudindo. Ele apoiou as mãos no batente, os dedos para dentro e os cotovelos para fora, pendeu o corpo para a frente e começou: — Povo de Manarairema! Antes que ele pudesse ordenar as ideias para a primeira frase um cavaleiro entrou afobado no meio da multidão, empinando o cavalo e espandongando gente. Era o tenente Aurélio, com crepe no chapéu e no braço.
— Morreu! Morreu! — gritava ele. — Morreu o Rei da Síria! Os sinos começaram a tocar, dos lados do Campo da Forca ouvia-se um toque triste de cometa, um foguete soltado do fundo de algum quintal, com certeza para festejar a proclamação do futuro intendente, voltou sem explodir, deixando no ar dois riscos de fumaça quase paralelos. A multidão foi se dispersando acabrunhada, muito provavelmente pensando na roupa que precisariam desencravar para a missa de sétimo dia.
Juventino virou as costas para a rua, sorrindo triste mas sorrindo. A espingarda estava ainda em seu estojo no chão ao pé da mesa. Ele ergueu o estojo, abriu-o em cima da mesa e tirou a espingarda. Era um belo trabalho de armeiro, com certeza feita por encomenda, e provavelmente não haveria duas iguais no mundo. Quanto teria custado? Quanto valeria? Juventino correu a mão pela arma, do cano à coronha, sentindo a frieza do aço e a lisura pegajosa do verniz novo.
Não era preciso apagar o brasão. Ficava para valorizar.

— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". seleção de J. Aderaldo Castelo. São Paulo: Global Editora, 2000.

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